A Psicanálise Hoje (1983) no Brasil
Para comemorar o quarto aniversário, Gradiva (Orgão Oficial da Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo), reuniu na residência de seu diretor, Carlos Castellar, cinco psicanalistas para debater, numa mesa-redonda gravada, o tema Psicanálise Hoje no Brasil. Durante mais de quatro horas, Galina Schneider, Manoel Thomás Moreira Lyra, Hélio Pellegrino, José Ibsen de Almeida e Walderedo Ismael de Oliveira discutiram com muito ânimo questões relacionadas à sua disciplina, num debate sem precedentes na história da Psicanálise no Brasil. Os temas levantados foram desde a repercussão da situação política nas instituições analíticas, até questões relacionadas à formação analítica, passando pelas transformações ocorridas nos ultimos anos. José Ibsen de Almeida só pode chegar depois de algum tempo de iniciada a mesa-redonda, por isso, só começou a interferir a partir desse momento. Galina Schneider é presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, instituição à qual também pertence Hélio Pellegrino. Lyra e Walderedo são analistas-didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise, e José Ibsen de Almeida é do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. Participaram dos debates, porém mais como coordenadores, os analistas Carlos Castellar e Paulo Sternick, respectivamente diretor e editor-científico de Gradiva.
Castellar – Bem a idéia hoje era a gente conversar um pouco sobre como é que cada um de vocês vê a psicanálise brasileira nesse momento: a psicanálise brasileira dentro do contexto latino-americano, dentro do contexto internacional, como é que a gente está vendo as instituições psicanalíticas, se elas estão correspondendo à necessidade nacional, enfim, qual é o nosso momento em termos de psicanálise. Nosso momento em termos de economia, em termos de política, a gente sabe. Mas em termos de psicanálise, em nossa opinião as coisas estão muito pouco definidas. Ultimamente, presenciamos o crescimento de uma quantidade enorme de sociedades; tivemos a pachorra de contar, e só no Rio de Janeiro há quinze sociedades que se intitulam formadoras de psicanalistas. Umas chamam psicoterapia psicanalítica, outras psicanálise mesmo, e isso só no Rio de Janeiro, ainda temos São Paulo, Minas, enfim… E como é que está tudo isso? Como isso é visto por pessoas não só da experiência de vocês, como também da posição de liderança que o grupo todo aqui reunido tem dentro da psicanálise. Eu acho que a gente não pode falar de psicanálise pura, sem lidar inclusive com a situação econômica, que está afetando a psicanálise também e as instituições. E quanto a situação política, eu acho que as duas maiores instituições psicanalíticas do Rio de Janeiro – a Brasileira e a Sociedade Psicanalítica – estão assentadas, realmente, na situação do clima político. Nós não podemos ficar aqui discutindo só numa torre de marfim sobre a psicanálise em si, separada da situação política, e da situação econômica.
Pellegrino – Castellar tem toda razão. A crise da SPRJ, por exemplo, a infelicidade da velha direção foi total, porque, no momento em que começava a abertura política, usou-se lá um recurso que lembrava exatamente o velho fascismo militar. Nós fomos excluídos de maneira iníqua e perversa, sem direito de defesa, e isso no momento em que a abertura começava e o País iniciava sua marcha para a democracia.Tais circunstâncias tornaram muito evidente a posição de fechamento da Sociedade e eu tenho certeza de que todo o momento político brasileiro influenciou e nos ajudou naquilo que nós conseguimos, se bem que a reintegração se tenha dado por via judicial.
Lyra – Mas faz parte da abertura também, não é, …
Pellegrino – Exatamente, faz parte, porque o judiciário é um dos…
Sternick – É. Isso que o Hélio e Lyra estão trazendo é uma situação interessante, que é a influência da situação política do país nas instituições analíticas, na direção dessas instituições analíticas, e eu pergunto até que ponto o clima político, o clima de liberalidade ou de autoritarismo no país em que está inserida a psicanálise também não determina clinicamente, na atitude da relação paciente-analista, da relação transferencial-contratransferencial, até que ponto não haveria também uma repercussão disso dentro dos consultórios. Digamos assim, num país em que se vive sob a égide do autoritarismo, a posição do analista não seria também uma posição mais autoritária?
Lyra – Claro. Se você quiser, posso lhe dar um exemplo, que vim a saber. Um analista, inclusive por sugestão de seu supervisor, ameaçou um cliente que era de esquerda, e que começou a manifestar interesse em se filiar à uma organização política, ou estudantil, enfim… Quando ele falou isso na análise, o analista, o analista disse: “Se você fizer isso, eu corto a análise”. Isso não é atender ao paciente.
Pellegrino – Exato, mas isso é exatamente uma posição absolutamente não-analítica, não é? E, para responder a sua pergunta, eu não sei, eu acho que um analista fiel à tradição freudiana, que é uma tradição evidentemente libertária – porque não vamos dizer que Freud foi um conservador, um reacionário político, porque isso é a casca do problema; ele foi um tremendo revolucionário, inclusive na medida em que libertou a verdade do desejo, ele está à esquerda, e inclusive a verdade está sempre à esquerda, e é nessa medida que um analista não pode adotar uma posição autoritária. Um analista que seja mais do que conservador, isto é, um analista que seja autoritário, que seja de direita, é um analista que não honra o seu nome de analista, e isso sem nenhum sectarismo político. Eu não compreendo um analista fascista, como não compreendo um analista stalinista. Isso, para mim, é uma contradição que não consigo compreender, nem pensar. Porque na medida que você é analista, na medida que você procura a verdade, você procura a liberdade, inclusive porque a essência da verdade é a liberdade. Então, se procuramos a verdade, temos cada vez mais um compromisso com a liberdade. Eu acho que esse analista que disse essa coisa é um equivocado analista, não um honrado analista.
Sternick – Hélio, para tornar mais realista e menos ingênua essa colocação, por exemplo, se fosse um período de repressão política violenta, de tortura… Uma coisa é o analista chegar e dizer, “Olha, a sua vinculação política com essa organização de extrema esquerda vai colocar um problema de segurança a nós…”
Lyra – Eu não disse nem o “extrema” que você está botando…
Sternick – Pois é, se for. Vamos tomar a coisa assim: se fosse um período de guerra armada, de tortura, etc, de violação de lares etc, se fosse isso, o analista poderia até dizer: “Olhe sua vinculação com uma organização supostamente de extrema esquerda…”
Pellegrino – Eu tenho medo de atender você!
Sternick – …“Vai colocar em risco o nosso trabalho aqui.” Isso é uma coisa. Outra coisa é dizer: “Se você se aliar a uma organização assim ou assado, eu corto a sua análise”, isso é outro assunto…
Pellegrino – Quer dizer: “eu fuzilo você!” Pois é, que o analista tenha medo, muito que bem. Se o Leão Cabernite tivesse me dito: “eu mantive o Amilcar Lobo por medo”, eu o respeitaria, certo? Ele nunca teve a hombridade de me dizer isso! Eu não sei sequer se foi esse o motivo que levou o Leão Cabernite a proteger o Amílcar Lobo, e a Sociedade Psicanalítica a proteger o Amílcar… O Amilcar ficou durante seis anos como candidato, em situação irregular sem que se tomasse nenhuma providência!
Galina – Acho que não é medo, não. Acho que é onipotência.
Pellegrino – Não é onipotência, não. É fascismo. Se não foi medo, foi fascismo. Vamos botar as coisas claras: ou é medo, ou é fascismo. Eu preferiria que fosse medo.
Galina – Eu acho que é onipotência.
Pellegrino – Sim, mas porque onipotência? Eu gostaria que você me esclarecesse.
Galina – Porque ele achava que tudo isso é resolvido em análise.
Pellegrino – Mas como? Até institucionalmente ele estava fora do lugar! Ele esteve seis anos fora dos estatutos!
Galina – Eu estou falando do tempo que ele esteve dentro.
Pellegrino – Dentro da Sociedade ele esteve em condições anormais, sem análise durante seis anos.
Castellar – Hélio, deixa a Galina dizer o pensamento dela.
Galina – Eu quero falar de outra coisa relacionada a isso. Eu acho que o colapso, digamos assim, da nossa Sociedade, da estrutura da nossa Sociedade, foi devido à falsa idéia de que se pode manter a sociedade psicanalítica isolada da comunidade. A psicanálise não é uma coisa pura que a gente possa preservar numa espécie de torre de marfim, fechadinha e incontaminável, mantendo aquelas regrinhas. E acha-se que o resto do que acontece não tem nenhuma influência sobre a gente, por isso foi que eu falei em onipotência.
Pellegrino – E isso é correto: a falsa assepsia…
Galina – … a falsa assepsia…
Pellegrino – Não, mas não havia só falsa assepsia lá!
Galina – … Não existe essa assepsia, porque o contexto mais amplo em que está inserida uma sociedade psicanalítica tem uma influência profunda sobre a vida de uma instituição psicanalítica, e ignorar isso, negar isso leva a essas discrepâncias e a essas rupturas, porque é negar a realidade.
Lyra – Eu gostaria de fazer só um comentário, pode?
Pellegrino – Claro!
Lyra – Eu acho que falar em onipotência fica muito claro. Essa pessoa que diz que se o paciente se ligar a qualquer organização de esquerda, o sujeito corta a análise dele, então ele não está sendo onipotente?
Galina – Pelo menos prepotente.
Lyra – Então o que ele está sendo? Ele está dizendo: eu não posso analisar alguém que é contaminado com algumas idéias esquerdistas, ou qualquer coisa assim. Então, esse camarada é um ditador, ele pode ter um outro tipo de onipotência: uma onipotência fascista.
Galina – A onipotência sempre é fascista, vamos levá-la muito a sério.
Lyra – A onipotência tem várias tonalidades, várias cores, eu acho. É interessante analisar esse negócio de onipotência, mas se a gente considerar… Então, o Amílcar Lobo fica lá. Muita gente da nossa sociedade, inclusive, sofreu mais. Acho que a nossa sociedade sofreu por causa do Amílcar Lobo. Foram intimidados, foram entrevistados pelo SNI…
Pellegrino – Exato, a Helena Viana passou muitos maus momentos…
Lyra – É, a Helena Viana foi intimidada, ameaçada, levada a um interrogatório tipo policial, foi denunciada ao SNI por colegas nossos, fascistas. Mas quem a derrubou foi esse grupo que se uniu, essa gente que está… então, com a chapa nova, primeira vez que fizeram uma chapa de oposição, então, alguém teve um enfarte. E eu acho que tem muita onipotência nesse negócio. Por exemplo, o analista ouviu o paciente dizer que tinha visto policiais torturando alguém. Mas, em nome do princípio de que a gente quer ver a realidade interna, e não a externa, disse: “Você não ouviu nada, você não viu nada”. Então, é assim o sujeito passa ao extremo de negar a realidade externa, em nome de um princípio saudável de que a gente não vai lidar com a realidade externa.
Galina – Não é um princípio saudável, Lyra, esse não é um princípio saudável. Eu acho que a análise não é só lidar com a realidade interna. Eu acho que é ver como o sujeito lida com a realidade interna e como é que lida com a realidade externa, e como se relacionam essas duas coisas.
Lyra – Não, Galina, eu acho que sob o ponto de vista de linha psicanalítica, que eu quero dizer, eu acho que realmente a análise deve lidar com a realidade interna, e é através de lidar com a realidade interna e com as fantasias que se tem, que obscurecem a objetividade da percepção da realidade externa, que a pessoa vai melhorar sua percepção. Uma pessoa diz: “o trânsito está interrompido”, e você pode achar que o trânsito está interrompido dentro dela, porque a pessoa está dizendo isso; você tem o
direito de fazer isso, pois o que é saudável é isso: é que você fica com a percepção da realidade externa distorcida pelas fantasias todas que existem, pela onipotência, pelo pensamento mágico, essas coisas, essas relações todas… Agora, se você lida com essas situações e consegue uma melhora disso, há menos projeção, há menos identificação projetiva… e aí a pessoa pode olhar nitidamente. A realidade externa pode ser olhada mais objetivamente. Então, o relacionamento da pessoa com a realidade externa fica melhor se ela checa sua realidade interna; não fica misturado. É isso que estou querendo dizer. Isso é que é a parte saudável que eu vejo na análise. Agora, em nome disso, se um analista diz: “não tem nada, nunca houve tortura nesse país”, então elê está alucinando, é uma distorção grotesca.
Pellegrino – É uma distorção com uma direção muito certeira, porque é uma distorção no sentido de apoiar o poder e a tortura.
Sternick – É considerar a realidade interna para impedir de se ver a realidade externa, e não para ajudar a vê-la melhor.
Galina – …a externa é jogada no lixo, e esse é que é o perigo.
Sternick – Agora , eu gostaria de levantar um ponto: o Lyra disse que membros da Brasileira denunciaram colegas ao SNI? Isso aconteceu?
Lyra – É aconteceu. Aconteceu. Isso foi apresentado à Assembléia Extraordinária contínua que a gente tinha toda noite, durante muito tempo, e foi discutido, e há muitas atas que temos… Houve denúncias, a princípio começou com o negócio da Helena. A Helena Viana teria uma carta que teria sido escrita por alguém, manuscrita…
Pellegrino – Não. Foi mandado um jornal clandestino para Buenos Aires, com uma observação escrita à margem…
Lyra – É isso mesmo…
Pellegrino – …e nesse jornal se denunciava o Amilcar como membro de uma equipe de tortura. Esse jornal, não sei porque meios, veio ter às mãos do Leão Cabernite, e o Leão providenciou um exame grafológico que teria permitido a acusação da Helena Viana como possível autora dessa observação à margem do jornal. Então, a partir daí, ela foi muito maltratada, inclusive foi chamada…
Lyra – Formaram uma espécie de pequeno tribunal de inquisição, que era o conselho daquele tempo, e esse Conselho continha uma pessoa que tinha dois parentes próximos da família que eram membros do SNI, e que intimidou a Helena, dizendo que ela tinha que fazer não sei o quê, ou tinha que não fazer não sei o quê, uma porção de coisas. Intimidaram ela, disseram que ela iria ser cortada da Sociedade e entregue ao DOPS, um negócio assim. Uma dessas pessoas, um desses colegas, era uma pessoa que tinha dois genros no SNI. Quando foi denunciado isso, sua reação foi: “Eu não sei o que é SNI! Nunca ouvi falar em SNI!”. E esse camarada que tinha dois genros no SNI, o que ele falou na ocasião da reunião da Comissão de Ensino foi que ele não sabia o que era SNI, nunca ouviu falar no SNI. Então, o pessoal achou muito estranho e uma das pessoas disse, “Mas, Dr. Fulano, eu estive com a sua senhora, eu me dou com ela, e ela estava muito satisfeita no dia em que foi nomeado o primeiro genro do SNI, para o departamento não sei das quantas; e ela disse que estava muito feliz, que sabia que era um órgão de muito prestígio etc”.
Pellegrino – É, eu acho que essas coisas são importantes porque mostram o seguinte: felizmente, as coisas todas melhoraram muitíssimo. Eu acredito que na Brasileira tenham melhorado muitíssimo, e na nossa Sociedade também. Porque, na verdade, quando você fala de assepsia, que as sociedades eram fechadas e assépticas, eu não creio que fossem assépticas.
Galina – Não, …faziam de conta!…
Pellegrino – No tempo do velho poder… é, elas não eram assépticas, muito pelo contrário: era um ambiente muito carregadamente contaminado, muito autoritário.
Castellar – Era uma falsa assepsia…
Pellegrino – …uma falsa assepsia! Era um ambiente seriamente contaminado, a ponto de haver permanentemente, em atividade, uma defesa esquizo-paranóide. Eu acho que a grande conquista da psicanálise brasileira, no momento, pode ser caracterizada a partir da crise que a SPRJ viveu. Qual foi a essência dessa crise? Foi a impossibilidade de suportar a dialética, de suportar a contradição. Do momento em que nós, Mascarenhas e eu, representamos, na velha Sociedade, o pólo da contradição, fomos simplesmente cortados! Cortados por delito de opinião, sem direito de defesa! Isso mostra até que ponto havia um clima esquizo-paranóide. Tivemos que recorrer à justiça, e isto é alarmante numa sociedade de psicanálise, porque deveria haver um lugar para que nós pudéssemos discutir os problemas, para que a lei pudesse existir lá dentro. Nós tivemos que recorrer à lei de fora. E, finalmente, conseguimos reintroduzir na Sociedade exatamente o dissenso. E hoje, o clima da Sociedade é um clima de embate, mas é um clima muito produtivo, porque podemos nos desentender democraticamente, dentro da Sociedade.
Castellar – Mas você acha que isso motivou essa enxurrada de Sociedades psicanalíticas…
Pellegrino – Não, não, eu acho o seguinte… em parte, sim…
Lyra – É, esse é um ponto que a gente deve tomar agora…
Pellegrino – Acho o seguinte: acho que as velhas sociedades tradicionais ligadas à IPA – a Rio de Janeiro e a Brasileira – perderam a hegemonia tranqüila, perderam a hegemonia adiposa, a hegemonia preguiçosa, porque o Brasil cresceu muito, porque os psicólogos entraram no mercado, porque não houve nenhuma possibilidade de controle do mercado, como pretendeu uma vez a nossa Sociedade… A Rio de Janeiro chegou a fechar as portas à formação dos psicólogos – mais uma bandeira do Leão Cabernite!
Castellar – E a Brasileira mandou uma carta dizendo que era para não atender psicólogo, que era para ele não aprender a técnica.
Pellegrino – Exatamente. E inclusive se chegou ao ponto…
Galina – Novamente, negação da realidade.
Pellegrino – Negação da Realidade, exatamente! A onipotência.
Galina – Por isso é que eu digo, as instituições… Eu concordo com o Dr. Lyra em que o trabalho analítico é trabalhar a realidade interna, mas as instituições psicanalíticas não podem ignorar a realidade externa.
Pellegrino – Mas claro! Claro!
Lyra – Trabalhar a realidade interna não é fechar os olhos, não.
Sternick – Eu queria que o Dr. Walderedo falasse…
Pellegrino – O Walderedo é sábio: ele fala depois de ouvir, o que é a boa sabedoria…
Sternick – Está dando uma de mineiro, o Walderedo, não é?
Walderedo – Foi proposto que conversássemos sobre a situação da psicanálise no Brasil, não é? E como nós estamos, queiramos ou não, vinculados às duas Sociedades, imediatamente a discussão se encaminhou para um debate em torno, para que conversássemos em torno das respectivas crises, na Sociedade Psicanalítica e na Brasileira, temas que já são bastante conhecidos. Agora, eu gostaria de colocar uma posição, e eu sou, nesse ponto, mais conservador, porém, me acho revolucionário. Não sei, isso parece uma contradição, mas eu sou assim. É o seguinte: eu entendo que a psicanálise não tem política. A psicanálise é uma ciência de investigação da mente, é uma ciência da mente, mais propriamente da mente inconsciente. Enquanto isso, ela convive com fenômenos da magia, da onipotência, do real, do imaginário etc. Não é isso? Com isso também eu até discutiria como é que se define o cientificismo da psicanálise, com referência aos parâmetros das chamadas ciências exatas, que são as ciências realmente.
Então, lidando com esse mundo irracional, o analista, evidentemente, está constantemente mergulhado e participando dos registros que determinam esse sistema. Tanto Fenichel diz que a psicanálise lida com o irracional, e que ela difere dos outros métodos porque a psicanálise o faz de uma maneira científica. Mas como a psicanálise o faz de maneira científica, se, na relação analítica, o sujeito não se coloca de maneira científica, ele se envolve na relação que esse trabalho promove a partir dos desejos de seu próprio inconsciente? E este, como sabemos, é regido pelo princípio da magia, e, portanto, não-científico. É necessário distinguir o trabalho clínico da elaboração da teoria.
Pellegrino – Ela põe a realidade entre parênteses.
Walderedo – Então, veja bem, é como eu vejo a psicanálise. Agora, e o analista? Os analistas se organizam em sociedades científicas, e aí vem a outra dimensão, a psicanálise como “movimento psicanalítico”. Então, aqui é que a coisa pega e sabemos que, desde o início, o movimento psicanalítico foi marcado sempre por crises de política interna do grupo psicanalítico. Esta é a política que diz respeito ao analista enquanto analista. A outra ele deve assumi-la como um cidadão qualquer. Ele, no entanto, não pode ser um direitista, ou reacionário.
Galina – A política são essas várias instituições, aí vem a política.
Walderedo – As instituições psicanalíticas, não é? Desde as agregações iniciais que a psicanálise foi marcada por essas políticas ligadas ao seu próprio movimento de expansão. E, se a gente investiga um pouco, verifica que, mesmo havendo dissenções de ordem teórica e divergências científicas, o que marcou mesmo as crises foram rivalidades pessoais de ciúmes, coisas irracionais.
Então, eu faço uma distinção. Primeiro, deixar a psicanálise, seja teoria ou clínica, de um lado, e considerar como seu veículo de expansão a instituição ou organização que promove a parte política e a difusão da psicanálise, isto é, a sociedade psicanalítica. Então, aí é que vem a minha colocação. Mesmo parecendo um conservador, eu me considerei sempre um revolucionário, interessado no maior conhecimento do homem. Mas eu penso o seguinte: eu não consigo ver uma sociedade psicanalítica que queira, por exemplo , ser democrática, com isso implicando no abandono das normas tradicionais da formação do psicanalista. O rigor científico deve vir antes da ambição do poder.
Pellegrino – A democracia, Walderedo, é a possibilidade de você discordar. Na velha Sociedade, fomos expulsos por delito de opinião. Fomos feridos nos nossos direitos cívicos. Nesse ambiente, a psicanálise não pode advir. De resto, não poderia advir nenhuma ciência, porque o ambiente era perverso.
Walderedo – Hélio, você precisa ver o seguinte: queiramos, ou não, a sociedade psicanalítica é uma sociedade meio primitiva, hermética, quer dizer, regida ou movida também por forças muito irracionais. É difícil a gente tentar se libertar disso, porque os analistas vivem nesse mundo e são contaminados constantemente por essas energias. Então, dificilmente você vai conseguir que a sociedade funcione nos parâmetros e num nível perfeitamente racional, como uma sociedade, por exemplo, dos advogados ou dos físicos, ou outras semelhantes. Nós pagamos o preço de pretendermos lidar com o irracional, o mágico, o primitivo que subjaz em nossas mentes.
Pellegrino – Mas, Walderedo, então você diria o seguinte: quanto mais você conhece o inconsciente, mais irracional você fica? Então, quanto mais você convive com o inconsciente, mais irracional você fica? Nós teríamos, ao contrário, que ter uma sociedade menos conflituada do que outras sociedades, porque conhecemos as forças inconscientes que também obram nelas. Então, isso não é uma desvantagem, é uma vantagem.
Walderedo – Veja bem: eu tenho cautela ao falar; porque os meus pontos de vista e as minhas enunciações sobre, por exemplo, o desenvolvimento que se tem observado na Sociedade Brasileira de Psicanálise no sentido de democratização, de reformas etc, parece-me que, paradoxalmente, vai nos levando para uma situação que promete reduzir com a psicanálise a um nível bastante pobre, digamos, em cinco anos na instituição. Assim, se consegue acabar com a psicanálise. E você vê por exemplo, o que vai ocorrer com o ensino na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de janeiro. Talvez eu esteja um pouco cético, mas eu acho que em cinco anos aquilo vai decair a um nível de pobreza e insuficiência no que diz respeito ao ensino…
Pellegrino – Mas por que razão? Estou ouvindo o Walderedo falar e tenho a sensação de um déja-vu (déja: entendeu). Mas é estranho que vocês me digam que ele está falando da situação presente na sua sociedade.
Ibsen – Que relação você estabelece entre a formação psicanalítica e as sociedades psicanalíticas?
Walderedo – É fundamental. Fundamental, porque da formação, da qualidade de formação depende a sociedade psicanalítica. A formação é um viveiro natural de psicanalistas. Então, se eles são mal formados, evidentemente as sociedades pagarão por isso.
Ibsen – Mas, Walderedo, voltando àquele ponto, eu continuo com uma dúvida, porque eu acho que é impossível existir psicanalista e sociedade formadora de psicanalista. Eu acho que a sociedade pode informar sobre psicanálise, mas não acredito que uma sociedade possa formar psicanalistas… Existem as formações do inconsciente, o que é diferente de formação psicanalítica.
Walderedo – Nós na Sociedade tínhamos a antiga Comissão de Ensino, que era constituída por nove analistas, de certo modo um pouco autocrática, meio feudal, idiossincrásica. A Comissão de Ensino era uma estrutura fechada do mundo, e as pessoas divergiam mais por coisas catatímicas e pessoais, do que por causas racionais e científicas ou de ensino.
Sternick – O que era ser “autocrática e feudal”, por exemplo? O que era isso?
Walderedo – Por exemplo, eu tenho um candidato que terminou a formação. Então, a comissão era de nove. O candidato preencheu todas as exigências do currículo. Então, três pessoas ali votaram contra esse candidato, que tinha feito a formação, tinha sido aprovado. Ele foi reprovado, não foi aceito como analista. É um caso concreto. Então, três didatas decidiram o destino de uma pessoa. Veja bem: essa velha Comissão de Ensino realmente tinha poderes excessivos e decidia coisas como essa, e outras. A gente sabe disso, não é? Absurdas, não é? Eu posso até me gabar, e acho que o Lyra também, de que nesse ponto eu fui muito objetivo e deixei de lado minhas simpatias pessoais e políticas e nunca fiz essas coisas. Mas fizeram isso lá.
Pellegrino – Isso é grave. Isso mostra a falência desse sistema.
Walderedo – Num primeiro momento, houve uma revolução. Numa noite famosa lá, nos idos de 1979 ou 1978, se modificou a estrutura, a organização dessa comissão. A Comissão de Ensino, que era aquele grupo fechado, autocrático, se expandiu e se nomearam 21 analistas didatas. Não foi isso? Foi: 21 analistas com funções didáticas. Isso foi um passo formidável, fantástico. Significou uma mudança radical. Diluiu-se aquele poder, aquela coisa intolerante, autoritária.
Pellegrino – Quer dizer, foi um passo necessaríssimo, mas não suficiente, porque é necessário abolir o estatuto do didata, uma vez que esse estatuto do didata, uma vez que esse estatuto não tem, teoricamente, nenhuma razão de ser.
Walderedo – Então, veja bem: isso foi uma coisa significativa e importante para a sociedade, quer dizer, 21 pessoas estavam credenciadas e podiam fazer análise didática. Muito bem. A partir daí se processaram modificações, de que eu confesso que nem estou a par direito, porque foram tantas e se escreveu tanto. Acho que, realmente, passou-se para uma situação oposta, de uma verdadeira permissividade para ensinar, sem saber, sem avaliar as qualificações da pessoa que vai ensinar. Por exemplo, se estabeleceu um critério que é o seguinte: o analista que sai de nossa Sociedade e que tem cinco anos de prática pode fazer análise didática, quer dizer, funcionar como professor. Então, eu pergunto: em que faculdade do mundo um médico sai e, depois de cinco anos, é professor da faculdade? Nenhuma, não é? Tem que haver um mínimo de critério para avaliar as aptidões e capacidade de quem vai exercer essa tarefa.
Pellegrino – Não, mas o analista didata não é professor: ele faz a análise do candidato e a análise do candidato não é diferente de uma análise terapêutica.
Walderedo – Evidentemente que não… Casualmente eu me sinto muito à vontade para falar isso porque sou daqueles que, quando uma pessoa vem me procurar como candidato para fazer análise, eu respondo que não sei o que é isso. Eu procuro fazer análise, não é? Quando o sujeito insiste muito, “Ah, mas eu queria fazer curso” etc., eu digo, bom, você vai fazer uma análise; a análise vai servir para a sua vida, para várias coisas, talvez até sirva para esse curso que você quer fazer, não é? Mas não tem nada a ver com o curso, é claro. O que eu quero dizer é o seguinte: o critério de cinco anos, sem outra avaliação, é realmente abusivo, e a breve termo vai prejudicar a formação de analistas.
Sternick – Você acha que a pessoa é pouco experiente para dar uma “formação”?
Walderedo – Não, não, mas eu tenho em mente aqui uma, duas, três, quatro pessoas que têm cinco anos já, e que consta lá: pode fazer análise de candidatos. O primeiro não vai a Sociedade nunca, nunca apareceu lá, não se interessa. O segundo: encontrei-o na rua, uns três ou quatro meses atrás: “como vai fulano? E a Sociedade?”. “Eu nunca mais fui naquela droga, não me interessa e não vou lá”. O terceiro: uma pessoa que é um grande amigo meu, mas que não se interessa, nunca foi lá, etc. Então, esse critério é absurdo e empobrecedor.
Pellegrino – Mas o candidato não vai procurá-lo, Walderedo! Ele vai gastar muito dinheiro! O candidato procura os sujeitos que sejam competentes, certo? O candidato não vai pagar…
Walderedo – Veja bem: não é assim, as turmas que estão entrando são enormes, o Instituto já não fornece condições suficientes para dar um bom curso de psicanalistas, porque não tem professores, não tem condições materiais nem intelectuais, nem didáticas para isso…
Pellegrino – Isso na Brasileira…
Walderedo – É, não tem.
Lyra – A abertura foi perversa. Faça-se tudo aberto agora (…) qualquer negócio.
Walderedo – Veja bem, acabaram a Comissão de Ensino e instituíram, por exemplo, os chamados grupos de acompanhamento. Uma tríade, um tripé, três analistas se encarregam de acompanhar os candidatos. Uma vez por mês, então, tem aquela Via Sacra dos candidatos, e eles têm que ir lá prestar contas àquela comissão de como estão trabalhando, como está a supervisão etc. De maneira que criaram uma burocracia, uma tecnocracia…
Lyra – Mas quem criou isso, quem? Alguém chegou e disse assim: “eu bato e arrebento para fazer dessa sociedade democrática”… Uma perversão da abertura para uma permissividade.
Walderedo – Pergunto-me se não era melhor a estrutura arcaica e mesmo um tanto conservadora da comissão de ensino. Ela não chegava a perturbar a qualidade do ensino e até ensinava melhor.
Castellar – Eu acho que o problema da análise pessoal não tem muito a ver com o problema da formação psicanalítica. Eu acho que a análise é uma coisa. É evidente que ela vai repercutir na formação, em função do comportamento que aquele indivíduo vai ter não só dentro da sociedade, como fora dela. Agora, o que realmente confere a condição de analista a uma pessoa é a sua produtividade, é a sua atuação dentro daquela sociedade onde ela tem compromissos com seus pares, e a repercussão que isso tem em termos da sociedade em geral. Então, o problema não é da análise pessoal exclusivamente; é de como esse indivíduo vai produzir dentro da sociedade. Isso é que vai dar a ele um status de analista ou não. Não é a sua análise, exclusivamente. É evidente que a análise tem um peso nisso. E se ele não tiver uma boa análise? E se ele não tiver um bom desempenho dentro da sociedade, ele não chega ao título! O que acontece é que o título é dado de maneira muito burocrática dentro das sociedades, e não através de uma produção realmente científica das pessoas.
Walderedo – Eu estava com a palavra. Agora, quanto a minha visão do analista enquanto político, a política mais ampla, fora da sociedade.
Lyra – Isso é importante.
Walderedo – Eu acho o seguinte: que o analista , enquanto analista, não é político. Mas a visão que ele tem do seu mundo interno e da realidade só pode levá-lo a uma posição mais liberal, progressista e até revolucionária frente ao mundo. Agora, ele, ao praticar isso, não o está fazendo, porque ele é analista, mas sim porque ele é um indivíduo, um ser social. Por exemplo, se eu atuo lá fora politicamente, eu não vou dizer “o psicanalista Walderedo Ismael de Oliveira”, feito aquele teu companheiro, “o psicanalista Fulano de Tal”; tudo que ele faz é “o psicanalista”, o que evidentemente, reflete insegurança ou exibicionismo.
Ibsen – Perfeito, eu também acho… mas psicanalista não é pessoa.
Lyra – Olha, Castellar, eu acho que todos nós somos políticos, em qualquer organização, em qualquer situação… Mesmo quando a gente se omite, essa é uma maneira de ser político. Agora, tem uma política legítima dentro da sociedade, que é esse negócio que o Hélio estava falando, que é poder conviver…
Pellegrino – …com as contradições.
Lyra – …com as divergências, com a diversidade. Agora, aconteceu na nossa sociedade que foi assim: apareceu lá uma pessoa que fez como o Figueiredo – “eu bato e arrebento aqui para fazer desse negócio uma democracia absoluta”…
Walderedo – Então você concorda comigo, está vendo?
Galina – Na democracia, o indivíduo tem funções, encargos, só que ele não pode fazer isso autocraticamente; ele tem que dar as contas do que ele faz. Eu acho que há muita confusão. O que muita gente chama de democracia às vezes é anarquia, e anarquia não é democracia.
Pellegrino – Não. Se uma instituição vota, e por voto da maioria dos seus sócios… Por exemplo, na nossa Sociedade, votaram os barões: votaram 18. Eu fui excluido por 18, e havia na Sociedade cento e tantos analistas que não votavam, pois não havia voto do Membro Associado. Isso é um absurdo! E não tem nada a ver com psicanálise nenhuma! Isso era uma restrição do espaço do poder para permitir exatamente o autocratismo, entende? Quando conseguimos o voto do Associado, democratizamos a Sociedade.
Walderedo – Sabe, Lyra, eu estou preocupado com isso quando eu falo, é que eu tenho medo de estar falando e você estar pensando que sou quadrado, conservador.
Lyra – …não, você… eu não sei se sou quadrado, se sou conservador, se sou direitista, ou esquerdista… Eu acho que a gente é tudo isso. Só um fato que eu gostaria de falar, que deve ser do conhecimento de muita gente: uma vez, uma supervisionanda minha, uma colega estava trazendo um material e eu olhei para ela e disse assim:”Escuta, Fulana, você é onipotente?” E ela: “Eu não! Como é que o senhor me pergunta uma coisa dessas?” E eu disse: “Porque eu sou”. (Risos) “Então, porque eu sei que sou, quero tomar conta da minha onipotência, tá?” Para ela não tomar conta de mim, não é? Acho que a gente deve poder conviver com nossas contradições.
Pellegrino – Exato, dialetizar o curso do psiquismo, aceitar a dialética da marcha do psiquismo.
Galina – Pois é. E a diculdade da democracia, ou do que se pode chamar de democracia numa instituição psicanalítica, é que como disse o Walderedo, nós vivemos muito o processo primário; isso já é um vício, e nós temos muita dificuldade em sair dessa posição e adotar uma outra de cidadão da sociedade, de obter o respeito mútuo…
Lyra – …um ponto em que a Galina entrou aí, sobre a onipotência, sobre a realidade externa, não negar a realidade externa… A gente vive no processo primário na medida em que a gente se entrega a ele, em vez de olhar para ele e poder conviver…
Galina – Pois é, mas parece que muitos analistas se entregam, e transferem isso para a instituição…
Pellegrino – …instituição psicanalítica é, frequentemente, um aparelho ideológico de estado, no sentido althusseriano. Por exemplo, a formação psicanalítica, e, mais particularmente, o didata: ele não se justifica teoricamente, uma vez que não há nenhuma diferença entre a análise dita didática, do candidato, e a análise terapêutica.
Galina – Não concordo. Eu acho que há diferença.
Pellegrino – Substancialmente, não. Eu gostaria então que você defendesse teoricamente a tese de que a análise do candidato é qualitativamente diferente da análise do cliente.
Galina – É diferente…
Lyra – Eu também concordo com Galina, às vezes…
Pellegrino – Diferente, mas não substancialmente.
Galina – Eu acho que o paciente vem para se tratar, tratar dos seus problemas, de si mesmo, independente de qualquer compromisso com a instituição psicanalítica. O candidato vem para se tornar analista, e isso muda muita coisa.
Pellegrino – Não muda, não. Não muda essencialmente, não.
Galina – Bom, você pode não concordar. Muda. Muda, pelo seguinte: porque sempre existe um terceiro elemento dentro dessa análise, que é a instituição, que é a formação…
Pellegrino – Mas é um elemento imaginário!
Galina – …que é partilhado pelos dois.
Pellegrino – Mas o terceiro elemento é imaginário, Galina!
(confusão geral)
Lyra – Olha aí, a Galina acha que…
Galina – É diferente, é diferente…
Ibsen – Mas eu queria dar um exemplo pessoal. E se alguém a procura, na condição de paciente…
Galina – É diferente…
Ibsen – Espera aí, calma. E depois de algum tempo, como aconteceu comigo, depois de algum tempo surge o desejo de ser psicanalista. Como é que ficaria isso dentro do quadro que você descreveu?
Galina – Não, é diferente…
Ibsen – Ao contrário, falta a diferença. Trata-se de uma situação especular, dual. Mas o terceiro, Galina, o terceiro é a lei, o terceiro é a ordem do simbólico, o terceiro é o corte que instaura a diferença, o terceiro não é a instituição… (Galina fala ao mesmo tempo).
Galina – …Se você ignora esse terceiro, finge que ele não existe, ou que ele é apenas da ordem do imaginário e não uma realidade, então a análise vai para a cucuia…
Pellegrino – Não vai para a cucuia, não! A análise vai para a cucuia quando entre um terceiro termo imaginário que leva o analista a trabalhar cheio de memória e de desejo, porque é um burocrata representante da instituição. Você entendeu? Se você institucionaliza a análise, a análise vai para a cucuia, porque o analista representa um discurso que não é o discurso do desejo do paciente!
Galina – Hélio, você não pode ouvir, não? Só pode falar?
Pellegrino – Não é verdade. Você é quem está com a palavra!
Castellar – Vou dar um exemplo pessoal. Eu comecei uma análise pessoal…
Lyra – Ah!, exemplo pessoal é muito bom!
Castellar – …comecei uma análise pessoal e, três anos depois, eu decidi que queria ser analista. Aí fui obrigado a abandonar a minha analista, aqui presente, e mudar de analista, que eu não queria.
Pellegrino – Isso é um absurdo!
Ibsen – Completo, eu acho, e é muito mais frequente do que se imagina, e o pior, é que nos submetemos a subordinar a psicanálise aos ditames da instituição.
Lyra – Pois é, mas eu tomei uma pessoa em análise, que veio para fazer formação. Então, eu era didata, ele se inscreveu, foi aprovado no Instituto na primeira entrevista, aprovado na segunda entrevista, foi indicado para começar os seminários, enfim, depois foi indicado para outras coisas, e quando estava no quinto ano de análise, ele foi inteiramente liberado para a formação analítica. Todo o mundo aprovou, exceto eu. Eu era analista dele e sabia que ele não podia ser analista, não tinha condições. Talvez, se eu tivesse feito vinte anos de análise nele, se eu fosse capaz de fazer e ele fosse capaz de aguentar isso, vinte anos em análise, ele talvez fosse. Mas naquela época, não era.
Pellegrino – Mas você foi juiz dele! Isso é um absurdo! O analista não pode julgar um paciente! Se você é juiz do seu candidato, você como analista é fundamentalmente…
Lyra – Espera aí, Hélio, você não está entendendo…
Pellegrino – …você não pode julgar seu paciente! É uma deformação institucional. Eu acho que o analista se torna juiz do seu candidato! É uma deformação gravíssíma!…
Galina – Não adianta dirigir-se a mim, que eu jamais fiz isso!
Lyra – Espera aí, deixa eu fazer uma pergunta…
Galina – Eu nunca opinei sobre um candidato!
Pellegrino – Galina, você está perseguida. Não me dirigi a você, eu estou falando com o Lyra, você me perdoe.
Galina – Não, porque você está olhando…
Pellegrino – Não posso olhar para você? Você quer que eu fale de viseira? Você está perseguida, e por isso, implica comigo…
Lyra – Oh!, rapaz, espera aí.
Sternick – Deixa o Lyra falar, deixa o Lyra se defender…
Ibsen – …é discurso ou é fala, hein?
Lyra – O que é que esse candidato, essa pessoa que foi aprovada por todo o mundo no Conselho, na Comissão de Ensino, nas entrevistas e outras coisas, podia fazer, se ele não tinha condições? Bom, isso é uma coisa que acontece! Essa pessoa tinha um certo grau de atividade homossexual ego-sintônica, em que ele só ficava chateado quando as coisas não iam muito bem e tal, …(ininteligível) e que só depois de muitos anos é que ele começou a revelar, e depois a gente verificou que ele voltava outra vez para as duas situações. Então, ele era capaz de fazer várias coisas: de administrar os bens dele, porque ele era casado, tinha família, tinha vários filhos, e ele foi… voltou para fazer essas coisas. Mas, para fazer análise, mantendo uma atividade homossexual ego-sintônica? Quer dizer que ele aceita? Há quem diga que é preconceito. Mas como é preconceito? Não sei. Se é preconceito contra os homossexuais, então é contra a obsessão, é preconceito contra a fobia, não é? Contra a neurose, não é? As pessoas acham que a neurose deve ser tratada, por quê? É um preconceito social, não é? Essa aí é uma das teses que são colocadas pelos homossexuais. Os gays são mais dessa tese.
Ibsen – Tem pessoas que eu conheço que julgam analistas 24 horas por dia. Tem outras pessoas que são menos presunçosas e que se julgam analistas apenas durante as 24 horas de cada 50 minutos. Agora, eu pergunto: o analista é pessoa? Qual é a relação que existe entre, vamos dizer, os efeitos interpretativos, os efeitos de lugar, de estrutura, do discurso da psicanálise e a pessoa, o cidadão que porta esse discurso? Essa é uma indagação. E a outra: eu acho que a sociedade psicanalítica, o instituto de psicanálise não tem nada a ver com formação de analista. Quem forma analista é a análise e o desejo de analista. A transmissão se dá através da transferência, lugar da verdade, e é confirmada pelo reconhecimento de pacientes que o procuram como psicanalista, que vai prestar contas disso através da transferência e da apresentação de trabalhos teóricos, seminários, etc.
Lyra – Mas não faz diferença…
Ibsen – Eu acho que faz. Trata-se da própria diferença.
Lyra – Eu pensava que você estava falando do caso concreto que eu citei. Mas, voltando. Chegou um ponto em que a instituição aprovou. Tudo, todo mundo aprovou. E eu disse: já que vocês todos aprovaram, eu preciso dizer que essa pessoa não pode ser analista. Eu não me responsabilizo… eu veto…
Pellegrino – E você agiu corretamente enquanto membro da instituição! Mas não como analista. É essa a contradição inevitável.
Castellar – …queria colocar uma questão importante: o que é que confere esse título de psicanalista? Quem é que confere o título de psicanalista?
Lyra – Aí está! Aí está uma pergunta…
Galina – …o que confere o título de psicanalista é a credibilidade… não basta ele dizer que é. É preciso que os outros reconheçam…
Ibsen – Mas é o que eu estou dizendo, é o que eu estou dizendo. É a questão do autorizar-se, da garantia.
Galina – Não basta o indivíduo ter uma boa clínica, porque, como você disse, Lyra, isso não prova que é analista. O que confere ao indivíduo o título de analista é a credibilidade, é o reconhecimento dos seus pares que o aceitam… como tal.
Pellegrino – É o aval de uma sociedade confiável também: isso é fundamental! a IPA e a SPRJ são instituições inseridas no tecido social. Elas reconhecem o seu título, a partir desse vértice. Todo o trabalho tem uma dimensão social; nesta medida tem que ter um reconhecimento social! O trabalho não é uma atividade autista. O trabalho é uma realidade social e, como tal, ele tem que ser reconhecido socialmente.
Ibsen – Mas uma instituição formada nos moldes universitários, é impossível conviver com a psicanálise. Daí eu discordar dessa abordagem.
Pellegrino – Estou de acordo! Vamos mudar essa instituição! Vamos lutar para mudá-la. Exatamente, estou de acordo.
Sternick – Lyra, duas perguntas, curtas e uma ligada à outra: você acha que pertencer à uma instituição analítica confere a alguém a capacidade de ser psicanalista? Dá a alguém a garantia de ser psicanalista?
Lyra – De jeito nenhum. Pertencer à instituição? Não.
Sternick – Você acha que não pertencer à instituição não dá a alguém a capacidade de ser psicanalista?
Lyra – Geralmente, não dá.
Sternick – Pode haver psicanalista sem pertencer à uma instituição?
Lyra – Pode.
Pellegrino – Você pode fazer uma formação de livre atirador. Você pode fazer… Olha aqui: vamos supor um jovem que queira ser analista. Procura o Walderedo como analista. Então, o Walderedo vai analisar esse jovem numa análise que não é institucionalizada. Esse jovem faz cursos, faz seminários, frequenta grupos que estudam… Esse jovem, como livre atirador, eventualmente pode-se tornar analista. Tendo feito análise com um excelente analista, como é o Walderedo, tendo feito uma formação psicanalítica válida, porque ele tem realmente desejo de saber sobre seu próprio inconsciente, embora ele não se vincule explicitamente a nenhuma instituição, ele pode vir a ser um bom analista. E eu conheço alguns casos brilhantes nesse sentido, inclusive o caso do meu filho Pedro. E digo a ele: Pedro, não se institucionalize, pelo amor de Deus! (Confusão absolutamente total)
Lira – O Hélio é maluquinho…
Galina – Eu não acredito que, por muito tempo se possa ficar em isolamento…
Pellegrino – Não sou, em princípio, contra a instituição. Sou contra deformações ou neoformações pseudo-institucionais.
Lyra – Ele acha que é pervertida, ele acha que a instituição perverte…
Pellegrino – Não, não. Algumas, não todas Lyra, não é porque eu seja contra, não, deixa eu te explicar. Não, não Lyra, tanto que eu estou na instituição. No caso do Pedro, acho que ele está fazendo uma formação de livre atirador, de excelente nível. Que Deus assim o conserve. (pedaço da gravação inaudível)
Pellegrino – …a Sociedade tem o direito de saber como o candidato trabalha, não o que ele sonha, nem como vai a análise dele. O que a Sociedade deve fazer para aquilatar a capacidade ou não do candidato é medir a qualidade do trabalho dele, e isso se pode conseguir através de um corpo de supervisores da sociedade que possam ouvi-lo em supervisão – duas ou três, ou quantas forem necessárias – para poder dizer: esse homem trabalha bem.
Galina – Muda a autoridade, desloca o problema da autoridade para outro lugar, mas não muda a essência da questão da formação psicanalítica.
Pellegrino – Muda fundamentalmente, porque abre-se a possibilidade de o sujeito fazer uma boa análise, porque a análise fica descontaminada de burocracia e de institucionalização.
Galina – Eu tenho minhas dúvidas, eu tenho minhas dúvidas.
Lyra – O que? Que dúvidas?
Galina – Do que ele diz, porque toda vez que um indivíduo faz análise para se tornar analista, a instituição está no meio, de uma forma ou outra…
Pellegrino – Não está, não. Pelo menos, não deveria estar.
Sternick – Eu fiz formação analítica, com muitos anos de análise, supervisão e pesquisa, fora da instituição. Eu não fiz institucionalização analítica, e isso é diferente. São duas coisas diferentes…
Pellegrino – É. Isso é verdade… estou de acordo com ele…
Sternick – Então, como psicanalista independente, eu observei aqui que o que se discutiu foi sobre instituições, e a nossa conversa também era sobre psicanálise. Eu acho que não tem nada a ver, desculpem. Não tem absolutamente nada a ver psicanálise com grupos de psicanalistas.
Galina – Mas como não?
Sternick – Eu não acho que exista uma Sociedade Brasileira de Psicanálise… (confusão geral) …Eu acho que não existe (interrupções ininteligíveis) Sociedade Brasileira de Psicanálise. Não existe Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Isso não existe! O que existe é Sociedade Brasileira dePsicanalistas, e existe a Sociedade de Psicanalistas do Rio de Janeiro. São duas coisas diferentes: grupos de psicanalistas e psicanálise, aquilo que se faz entre uma pessoa e outra, na relação transferencial e contratransferencial. O que se discutiu aqui foi uma coisa sobre como ajudar as pessoas a se prepararem como psicanalistas, ou como esses psicanalistas se relacionam em sociedade, ou então como a realidade externa, política, social, repercute nas Sociedades.
Galina – Não, não, Paulo…
Sternick – Então, eu queria que a gente falasse um pouco também sobre, digamos assim, as correntes mais influentes de teoria e técnica, sobre a clínica, sobre, por exemplo, as repercussões das idéias da Melaine Klein hoje, ou do Bion, por exemplo, das formulações do Bion sobre memória e desejo, sobre o trabalho que ele comunicou… Podíamos até discutir sobre as repercussões das idéias de Lacan na teoria e na clínica, quer dizer, eu acho que a gente pode tentar falar um pouco sobre isso. O Dr. Lyra, por exemplo, que é uma pessoa de muita experiência, pode falar sobre como ele vê hoje em dia a situação da teoria e da clínica psicanalítica, a partir das últimas contribuições de Bion, ou de Melaine Klein…
Lyra – Posso falar? Eu acredito naquele provérbio chinês milenar que diz: a sabedoria é aquilo que sobra depois que a gente esquece o que aprendeu. Eu acredito nisso. Isso está ligado aos fenômenos de introjeção, incorporação: depois que é assimilado o negócio, você esquece. Quando você conta, já não sabe mais de onde veio, se foi do feijão, do arroz. Psicológicamente, isso é bem mais complexo. Eu andei comendo uma porção de coisas, sabe? Todos nós, claro, mas eu me dou o privilégio narcisista de ter comido, de ter mamado numa teta privilegiada, que era a Sociedade Britânica no seu auge, onde não faltavam Melanie Klein, com quem fiz supervisão, Hanna Segal, Paula Heimann, Joan Riviere, Winnicott. Todos foram meus professores. E essa gente toda discutindo… Eu fiquei engolindo aquele negócio todo, eu não sei mais de quem são essas coisas. Claro, às vezes você pode distinguir: isso é mais Melaine Klein, aquilo é… Mas de acordo com aquele provérbio chinês, você esquece. A gente não sabe mais de onde vem…
Galina – Assimilou…
Pellegrino – Porque ele está trabalhando sem memória e sem desejo.
Lyra – Isso é um negócio também relacionado a um mecanismo de desenvolvimento da criança, que eu aprendi também: a criança, depois que começa a imitar os pais, os sons e a linguagem, a linguagem passa a ser dela… Se não há dificuldades, a linguagem passa a ser dela…
Pellegrino – Isso, exato, ela tem fala própria…
Galina – … nós discutimos instituição porque a instituição é muito importante… É muito importante o indivíduo enfrentar dificuldades, obstruções, distorções. Nós somos seres sociais ligados a nossos pares. Para mim, sociedade psicanalítica é a minha família profissional, que eu amo, porque eu sofri, eu penei, eu odiei, eu batalhei, eu xinguei, compreendeu? Para poder continuar sendo eu mesma… e poder usar as coisas boas que eu aprendi…
Pellegrino – Nós somos contra a perversão na instituição! Contra a instituição perversa! Agora, eu morro pela instituição que me ajude. É o que fazemos, no Forum de Debates.
Ibsen – Eu só tenho um reparo a fazer, porque eu acho que cada um segue um percurso próprio, então, através de descaminhos, através de certos descaminhos, aqui chamados de “pseudo-análises”, se dá o encontro, sempre faltoso, do sujeito barrado, extraviado.
Galina – Cada vez que entra uma teoria nova, uma visão nova, a psicanálise, digamos assim, entra em convulsão. O lacanianismo está produzindo isso. Os lacanianos da nossa sociedade estão agitando a sociedade.
Pellegrino – Mas quem são os lacanianos da nossa sociedade?
Galina – Um deles é você.
Pellegrino – Não, não é verdade.
Galina – Ah! Hélio, não seja modesto!
Pellegrino – Não, não, eu não conheço suficientemente o Lacan, para me dizer lacaniano.
Galina – Agora, é uma convulsão, é uma agitação… é uma mobilização, porque questiona todas as coisas… obriga as pessoas a pensar, obriga as pessoas a rever… e faz as pessoas sofrerem e se assustarem.
Pellegrino – Muito bom!
Galina – Nossa sociedade é eclética, aberta a várias teorias. Agora vieram teorias novas… Eu acho que ela envelheceu um pouquinho, ficou um pouco estática, por causa do funcionamento institucional… e agora estão entrando teorias novas que não estão podendo ser assimiladas, e que estão convulsionando a sociedade, estão agitando. Mas eu acho que isso… toda agitação é boa. Eu acho que tudo isso, se puder ser assimilado, se puder ser entendido, vai enriquecer a sociedade.
Ibsen – Eu acho que, quando se vai falar a respeito de psicanálise, sobre psicanálise, a gente começa a se distanciar dela. Porque essencialmente, a psicanálise é escuta.
Galina – … é uma vivência…
Ibsen – Bom, você coloca como vivência, mas, na minha opinião, a vivência está dentro da linguagem. Eu acho que vivência se confunde com um roça-roça afetivo e, se não estiver codificado na linguagem, não tem sentido.
Pellegrino – É isso aí.
Ibsen – A Galina fez uma interferência aqui que eu não posso aceitar. Eu acho que a questão de vivência, essa questão de afeto e tudo, isso é uma coisa que tem afetado negativamente até a compreensão do que seja transferência em psicanálise, não é? Eu acho que cada analista tem que, de alguma forma, ser um novo Freud, tem que reinventar a psicanálise. Porque a psicanálise, o discurso da psicanálise é tão subversivo que a pessoa não suporta os efeitos desse discurso, fecha o furo, arrolha e então pega desvios e faz, digamos, de um afluente, a via principal. O que eu quero dizer com isso é que o discurso psicanalítico, tomado na acepção que o Lacan propõe, o retorno ao sentido de Freud como o sentido do retorno a Freud, implicaria que, sendo a análise essencialmente a escuta, a escuta daquilo que o paciente fala, quer dizer… a clínica psicanalítica é o dito numa análise. Lendo o Abraham, considerado excelente clínico, a impressão que me dá é o seguinte: tudo o que ele escreve são imaginações dele a respeito do que ele supunha que ocorria ali. É a visão que ele tem daquelas coisas. Não há, em nenhum momento, um dito do paciente. E eu acho que é fundamental o significante como materialidade em cima da qual se possa trabalhar. Então, num certo sentido, um analisando procura o analista quase como se dissesse assim: o que é que ele espera de mim? E, quando uma análise termina, é como se houvesse uma troca do quê pelo quem. Quando uma análise termina, existe um sujeito, um sujeito como suporte de um desejo, que poderia dizer assim: quem sou eu? Isso é, em linhas gerais, o que eu penso. Agora, para completar, acho que as instituições, não só filiadas à IPA, mas todas elas, seguem muito um modelo universitário, quer dizer… já houve a época em que as histéricas tinham prestígio; constituiam o modelo dominante, agora, o modelo que domina o mundo é o modelo burocratizante típico do sistema universitário, que carimba com a mesmice de um saber suposto sujeito ao vazio, a falta, a suposição de um sujeito suposto a saber. Então, em instituições onde vigora o discurso universitário, é impossível surgir o psicanalista. Uma coisa é se ter informações sobre psicanálise; outra coisa são as formações do inconsciente. E volto a dizer: o psicanalista se constitui através da análise, em que ele recebe na transferência, lugar da verdade, uma determinada transmissão, que pode ser confirmada pela busca de analisandos que o reconhecem como tal, e ele dá conta pública disso, através de seminários, de trabalhos, de discussões teóricas, se ele puder…
Pellegrino – Claro, ele tem que prestar conta à Sociedade.
Ibsen – Completando, existe, também, uma confusão a respeito de técnica psicanalítica; não existe técnica psicanalítica. É uma leitura deformada do Freud pensar que existe uma técnica psicanalítica. Isso é que dá margem a que surjam espuriamente várias psicoterapias, porque, na realidade, o que muitas pessoas chamam de relação analista-analisando é relação entre um falante e o analista, a técnica psicanalítica não existe, existe escuta psicanalítica.
Lyra – Bem, isso merece muita discussão e há muitos pontos aí com os quais, eu sei, muita gente não concorda.
Pellegrino – Bom, vou falar de novo a partir da minha prática, que é a prática da crise. Não vou falar de problemas técnicos específicos. Vou falar do panorama geral. Acho o seguinte: houve um momento em que as instituições ligadas à IPA alimentaram a ilusão de que elas poderiam ter o controle tranquilo, a hegemonia tranquila da atividade psicanalítica no Brasil. Tais instituições foram ingênuas, porque, como disse a Galina muito bem, nós não somos uma ilha. Somos tramados num tapete, e esse tapete é muito complicado; inclusive, entram fatores políticos, fatores de mercado, entra a pressão da demanda. A demanda que nos é feita é muito forte, porque o País está em crise, o País precisa de uma palavra que oriente, e muita gente da classe média nos procura, em busca dessa palavra. Esse caudal de fatores quebrou a hegemonia ilusória das sociedades tradicionais. E eu acho isso bom, como disse a Galina. Temos polêmica, temos o pólemos do velho Heráclito pré-socrático. O pólemos é exatamente o pai de toda a virtude: é a contradição, o movimento a dialética. E isso é o que, a meu ver, caracteriza o momento psicanalítico atual. É indiscutível que o movimento lacaniano – do qual não sou representante não porque o despreze, mas por não conhecer bastante Lacan, para intitular-me como tal -, vem deixando marcas em nossa paisagem psicanalítica. A contribuição de Lacan é dessas que não pode ser ignorada, por quem quer que se dedique à prática da psicanálise. Lacan, no retorno dele a Freud, funciona como um cartógrafo genial que, realmente, redimensionou a terra nova descoberta por Freud… O Lacan é um epistemólogo de gênio! Ele releu a terra descoberta por Freud em termos do atual estágio de nossas ciências humanas: usou a linguística, a antropologia, a filosofia, usou Heidegger, Lévy-Strauss, Hegel – Hegel, principalmente! Porque ele é basicamente hegeliano! Lacan é um racionalista hegeliano.
Ibsen – É. Ele partiu do Hegel, embora depois ele tenha…
Pellegrino – Não. Partiu de Hegel e chegou a Hegel! Mas, voltando ao tema: de repente, ficou questionada a hegemonia tranquila e adiposa das sociedades tradicionais. O movimento lacaniano existe, o Magno é um homem que não conheço pessoalmente, mas me parece inteligente… Conheço ele pela poesia dele, que é boa, e isso me faz levá-lo a sério: ele é bom poeta. Não estou dizendo que seja bom ou mau psicanalista. Não conheço o trabalho dele. Acho que é sujeito inteligente, bom poeta, fez uma formação na França, analisou-se lá, enfim: é um elemento inquietador, que está presente e trabalha muito!
Ibsen – Muito, muito! Com relação ao Hegel, Lacan o estudou com H. Kojen durante 15 anos. Eu não diria que o Lacan é hegeliano. Há reconhecimento indiscutível de sua contribuição, como, por exemplo, no discurso do senhor, nos conceitos de Verneinung, etc. Lacan fez um percurso através de Hegel, mas isso é diferente de chamá-lo de hegeliano.
Pellegrino – Eu não conheço o Colégio Freudiano, mas sei que eles trabalham muito! E têm uma força de convicção, a ponto de terem levado alguns colegas nossos: o Molina foi para o Colégio, o Belmiro foi para o Colégio, você, (a Ibsen) espero que não nos deixe…
Lyra – Aos fatos, rapaz!
Pellegrino – Espera aí, vamos com calma!
Lyra – Mas fica aí falando desse pessoal do Magno…
Pellegrino – Eu estou falando da influência do movimento lacaniano no Brasil, e o Magno é um dos representantes. Outro representante, por exemplo, é o Vidal, da Letra Freudiana, que é um homem sério, honrado, estudioso, e está dando um bom testemunho! Uma outra instituição lacaniana interessante é o Instituto Freudiano de Psicanálise, integrado por pessoas estudiosas, competentes, capazes, que estão fazendo o esforço delas. Agora, não pertencem à IPA! Acho isso uma grande conquista! Inclusive porque inquieta a IPA. A IPA, hoje, tem que levar em conta essa fermentação no pensamento psicanalítico, que é produtiva e positiva. Eu estou inteiramente de acordo com a minha velha amiga Galina! Acho que isso é a pré-condição para a gente encontrar a verdade. O Lacan, vamos discordar dele no que a gente quiser discordar, mas ele teve um mérito fundamental: questionou a fundo o problema central da instituiçãopsicanalítica, que é a formação analítica. Esse é o problema fundamental… O Lacan foi quem questionou mais radicalmente esse problema. Inclusive, hoje, tive o prazer de ouvir da Galina, de maneira discreta, como é do seu jeito, e em virtude de sua condição de presidente da SPRJ, ouvi dela uma coisa que me satisfez muito: é que ela é muito inquieta com relação à formação que se faz na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Eu acho isso muito importante! Inclusive, ela adere ao chamado modelo francês.
Galina – Eu não adiro, não.
Pellegrino – Quer dizer, você pelo menos o leva em conta, você admite a possibilidade da fecundidade desse modelo. E esse modelo, o que é? É nada mais, nada menos do que a tentativa de preservar a análise pessoal da institucionalização, isto é, de uma interferência externa, burocrática, que desnatura e pode matar o processo psicanalítico. No Rio de Janeiro, hoje, há uma fermentação produtiva. Nós temos o movimento lacaniano por um lado, que nos instiga, temos outras instituições, como a instituição do Horus Vital Brasil, que é uma honrada e decente instituição (o Horus é um dos patriarcas da psicanálise no Rio de Janeiro, homem profundamente honrado, estudioso e inteligentíssimo), … o Instituto de Medicina Psicológica; temos o Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, feito de ex-integrantes da Sociedade do Rio de Janeiro. Temos a SEPLA, agora em fase muito produtiva. Enfim, o importante é o seguinte: é que nós perdemos, quebramos os dentes da nossa onipotência. Volto ao Lyra: nós perdemos a nossa onipotência. Volto ao Lyra: nós perdemos a nossa onipotência.
Galina – Felizmente!
Lyra – Perderam?
Lyra – Eu acho que não…
Pellegrino – Nós todos perdemos a nossa onipotência: a Brasileira e a Rio de Janeiro, e eu acho isso muito importante.
Lyra – Todo mundo está procurando fazer uma ressurreição de Freud, como ele era, não sei o que lá, e tal. Eu acho que esse negócio não é exatamente assim. Quem quer fazer isso são os lacanianos. Eles acham que o Lacan pode fazer isso, ou que os lacanianos estão fazendo. Esse negócio, eu acho que é uma balela muito grande. O Freud disse: “Eu andei por vários caminhos nos quais não fui mais longe porque tinha outros caminhos que eu queria também seguir, e espero que as pessoas que venham depois prossigam nesses caminhos que eu comecei”. Mas de acordo com os lacanianos: “Não, Freud não foi lido direito: então vamos olhar direito”. Por que todo mundo leu Freud errado? Olha só a onipotência disso!
Galina – Só ele é que leu direito.
Lyra – Todo mundo leu Freud errado! Só os lacanianos é que vão ler Freud certo! Só agora, não é?, que começaram a ler Freud certo. E como é o Freud certo? É o seguinte: Freud disse isso-assim-assim, e isso significa isso-assim-assim. Por que? Porque Lacan diz que é. Então, pronto. Então, a ressureição do Freud é uma ressureição distorcida…
Ibsen – Eu me dou o direito de interferir. Não se trata de maniqueísmo certo/errado; bom/mal. Lacan propõe uma leitura de Freud sustentada em uma determinada lógica: a lógica dos significantes.
Lyra – Espera aí! Eu não posso dizer alguma coisa? Ele falou tanto…
Ibsen – Ele interferiu na minha fala também.
Lyra – Mas ele falou tanto do Lacan aí, eu não posso dizer alguma coisa?
Ibsen – Você leu o Lacan?
Lyra – O Lacan?
Ibsen – Você leu o Lacan?
Lyra – Eu leio Lacan, o bastante para não poder, para não aguentar mais! Então, é assim: isso aqui é assim porque Lacan disse. Os discípulos dizem: isso aqui é verdade. Por que? Porque Lacan disse! Então, esse negócio é muito mais do que nas épocas mais idealizadas em que Freud viveu como ídolo da psicanálise e tal. O Lacan assumiu o negócio.
Galina – O herdeiro de Freud!…
Lyra – Esse negócio de que todo mundo quer ressurgir o Freud é negócio lacaniano. Eles querem ressurgir o Freud? Não é o Freud, não! É o Lacan! Com a personalidade do Freud supermodernizada e superinterpretada e superlida, lida de uma maneira, numa linguagem completamente diferente, que todos nós, as burrices dos psicanalistas do mundo inteiro ficaram lendo Freud sem saber que estavam lendo Freud! Só o Lacan é que descobriu: olha, vocês estão lendo tudo errado! Vocês estão lendo o Freud em alemão, e o negócio é em outra língua… Isso é uma balela. Isso são só contestações. Não é que todo mundo está querendo ressurgir o Freud. Quem está querendo ressurgir o Freud são os lacanianos. Agora, todo o mundo está querendo é pegar o que o Freud deixou e usar da melhor maneira possível. Isso é que eu acho que é verdade.
Quanto à pergunta do Paulo Sternick, que é o principal: clínica e técnica. Existe técnica? Sim, existe! Eu acho que isso é uma ditadura lacaniana: “não há técnica!” Por que não há técnica, por que? É que Lacan disse. Lacan disse isso, então isso é verdade. Então, não há técnica, no sentido geral de técnica… a técnica você pode transportar para o setor de engenharia, de biologia, de qualquer coisa… “Não há técnica, não há técnica”, é porque o Lacan disse, não é? Aí ele disse o que Freud não teve capacidade de dizer direito, não é? Ou que nós não tivemos capacidade de ouvir direito.
Como estão a técnica e a clínica da psicanálise no Brasil atual? A melhor psicanálise feita no Brasil atualmente, na minha opinião, é o núcleo que evoluiu em torno de Melaine Klein, Bion, Paula Heimann, essa gente toda, Winnicott… Essa gente fez um conglomerado, uns com mais tintas bionianas, outros com mais tintas winnicottianas, e tal, essa gente é que trabalha a melhor psicanálise do Brasil. Realmente. Acho que o melhor que há de clínica e técnica em psicanálise no Brasil está em torno daquele núcleo. Há um momento em que eles se casam de uma maneira produtiva, de uma maneira fecunda…
Ibsen – Como é que eles se casam? Na cabeça de quem eles se casam? Qual a diferença entre dizer “lacanianos” e conglomerado com tintas bionianas, winnicottianas, etc? É um raciocínio tantológico.
Galina – Eu posso dizer? Eu posso completar?
Lyra – Pode.
Galina – Porque eles se baseiam numa teoria na qual eu acredito agora. Cada psicanalista parece acreditar em alguma coisa, não é? Na teoria de relação de objeto, e que implica exatamente, digamos assim, na existência, na importância dos afetos, dos afetos primitivos. E não se pode traduzir isso em discurso frio, mas tem que ser revivido. A teoria de relação de objeto é revivido na análise.
Pellegrino – Eles são falados, Galina.
Galina – São revividos na relação transferencial. É essa a base da nossa teoria e da nossa técnica. E isso implica uma técnica. Há uma maneira de trabalhar a transferência. Há maneiras melhores ou piores, mas há uma maneira que é eficiente, há uma maneira que funciona.
Pellegrino – Isso é a interpretação!
Galina – É, é a interpretação, mas que não pode ser traduzida em discurso frio, não pode ser traduzida em ausência de normas, de regras…
Ibsen – Por que discurso frio?
Galina – Porque cada relação estabelece, tem limites, tem fronteiras, tem maneiras de ser, tem padrões que se estabelecem, e tem afetos implicados que têm que ser respeitados.
Pellegrino – Afetos que têm que ser analisados, através da palavra.
Galina – Na análise, eles têm que ser traduzidos em linguagem, mas têm que estar presentes e vividos.
Pellegrino – Claro, perfeito!
Galina – Então, eu concordo com o Lyra: os melhores psicanalistas são aqueles que vivem uma relação de objeto com o paciente.
Pellegrino – Aqueles que sabem falar dos afetos e interpretá-los.
Ibsen – Acabou? Eu discordo de tudo isso que vocês falaram agora. A questão da técnica, por exemplo.
Galina – … e são capazes de traduzí-la numa linguagem…
Pellegrino – Linguagem, perfeito, numa linguagem!
Galina – Numa linguagem accessível ao paciente.
Ibsen – Eu discordo de tudo o que a Galina disse e, logicamente, de tudo que o Lyra falou também. Eu quero justificar minha discordância.
Galina – Ótimo. Adoro discordâncias!
Ibsen – Há muito tempo, quando eu tive um grupo de estudos com Galina, com Gabriel; com Garrido e… lembra disso? Você não lembra disso, não! Logo que Bion veio ao Brasil e haviam aquelas fitas, a gente ia ao consultório do Garrido estudar, e de vez em quando eu te dava uma carona, você morava na Leopoldo Miguez e eu te dava uma carona de volta, está esquecida disso?
Galina – Ah, sim! Agora me lembro…
Ibsen – Sem memória e sem desejo. Certo? Então, eu me lembro nessa época, de uma conversa com você, de uma posição sua que você está repetindo aqui hoje. É. Quando alguém falava, você disse assim: “Isso é o que você acha que o Bion falou”. É como você dissesse assim: o que o Ibsen fala é o que o Ibsen acha que Bion falou, o que o Garrido fala é o que o Garrido acha que Bion falou, agora, o que Galina fala é o que Bion falou. Eu quero que me escutem até o fim! Então, eu acho que uma coisa importante é acentuar que estão usando dois pesos e duas medidas. Mas a Psicanálise não é um leito de Procusto. Eu vou propor amanhã ao Magno, se o Lyra me permitir, que ele possa ser membro do Colégio Freudiano, porque parece que ele conhece mais Lacan do que o próprio Magno, não?
Lyra – Como é?
Ibsen – Parece que você conhece mais Lacan, você fala com mais propriedade do Lacan do que o próprio Magno, não é? Você se apropriou da coisa ou “causa” do Lacan. Você falou de Lacan aí com, realmente, uma tal propriedade que, se você aceitar, eu vou propor você para membro do Colégio Freudiano. Deixa eu completar…
Pellegrino – Deixa de molecagem, Ibsen…
Ibsen – Não, eu quero completar! Porque o que eu escutei foi o seguinte: olha, o Lacan diz que só ele leu certo, mas não foi, não; quem leu certo foi Bion, Winnicott etc. etc. etc. Eu acho que não tem nenhuma diferença entre pegar um conglomerado que seria um pensamento britânico, vamos dizer assim, e dizer, não, quem leu certo, quem faz melhor psicanálise… E acho mais: uma psicanálise que seja útil, que seja melhor na minha opinião, não é psicanálise. A psicanálise não é da dimensão da necessidade, a psicanálise não é para ter utilidade.
Galina – Se não é, o que é então?
Ibsen – Ela é… a psicanálise…
Galina – Se não é, o que é que é, ora?!
Ibsen – A psicanálise não é… a psicanálise é uma relação de abjeto.
Galina – O quê?
Ibsen – De abjeto.
Galina – O que é isso?
Ibsen – Ela é uma relação de abjeto.
Galina – É uma abstração!
Lyra – Vamos reler o Freud outra vez!