Psicanálise de brasileiro – Anna Maria Nunes

   *Anna Maria Nunes

      Luiz Antonio Viegas me pediu para falar a respeito da família brasileira.   Confesso ter permanecido algum tempo, sem saber  por onde iniciar, pois trata-se de questão extremamente complexa. Gostaria de dividir a minha apresentação  em três tópicos: a família dentro da psicanálise, a psicanálise em relação à família, (pois, atualmente há uma busca e até, de certa forma,  um modismo da terapia  familiar)   e, por fim, quem  é  essa família  objeto da psicanálise. Ao estruturar esta fala, lembrei-me da citação de uma jornalista que, no início do século escreveu em jornal de grande circulação um editorial cujo título era “Família não se usa mais”. Isso em 1905 e noventa anos depois  continuamos exatamente com esse dilema: família existe, família não existe, qual é a família que existe, família vai acabar, família continua ?  Então, esse questionamento acompanha a trajetória da família, é inerente a ela.

     Em primeiro lugar  queria sinalizar que, se  perguntasse agora à cada um de vocês o que é família, cada um teria uma conceituação diferente porque para cada um de nós a família tem um  significado individual ao mesmo tempo em que mantém seu significado universal. Por outro lado, todos nós temos várias famílias: a família na qual nascemos não é a família vivemos hoje e possivelmente não  será a mesma  daqui há dez ou quinze ou vinte anos. Esse espaço familiar é um espaço que não é limitado. Família  não é uma estrutura fixa e limitada. Família se alarga, se estreita e, ao mesmo tempo em que é mutável é permanente. Então, família acaba se tornando, por vezes, muito ambígua. Há uma questão  fundamental:   a família contém , no sentido de estar dentro, à cada um de nós.  A família contém o homem enquanto uma unidade biopsicossocial. Esta me parece ser a questão fundamental.

     Ao pensar na família brasileira vê-se que ela é extremamente complexa. Um passeio pela história permite entrever que a colonização do Brasil foi multi cultural, multi racial e ainda hoje permanecem as consequências dessa formação. Por exemplo, aqui no Rio de Janeiro, numa mesma cidade, os valores,  a cultura familiar de quem mora na zona sul é bastante diferente da cultura familiar  de quem mora  em Jacarepaguá (zona oeste),  ou de quem mora no subúrbio. Não existe uma família brasileira com características específicas, mas  inúmeras famílias brasileiras de acordo com sua localização geográfica, origem étnica  e cultural.

       Um segundo aspecto que também caracteriza a família brasileira, e que de alguma forma todos nós vivemos, é a evolução do grupo familiar.  No início do século havia a família extensa, que transformou-se em família nuclear, depois na família monoparental e, de acordo com as definições  mais modernas na família unipessoal, passando  pela família do re-casamento, em que existem os meus filhos, os teus filhos, os nossos filhos. Nota-se, então,  uma variação no tamanho do grupo familiar que determinou mudanças em sua estrutura. A família extensa era bastante hierarquizada, implicava em uma ordem preestabelecida e distribuição de papéis e funções, muito clara. O homem era o chefe,  com atribuições específicas de provedor, à mãe cabia nutrir a família,  e os filhos deviam se submeter ao pai e a  mãe, às leis familiares. Nos últimos vinte anos, principalmente a partir da revolução de 64, e  de todo movimento internacional, a família buscou uma formação igualitária. A tentativa chegou ao extremo de se sonhar com  uma igualdade,  uma horizontalidade.  Evidente que essa família não conseguiu mudar de um modelo para  o outro, da estrutura vertical  para a horizontal e, na verdade o que existe hoje, a meu ver, é uma família que se caracteriza, em termos de estrutura, por uma grande ambiguidade. Ao mesmo tempo em que  conserva  uma série de padrões hierarquizados, bastante fortes,  tem outras características da família absolutamente igualitária.

     Essa família brasileira, vem passando por mudanças  extremamente intensas, que a caracterizam e, que, a meu ver  certamente exerceram uma influencia decisiva  na busca de  ajuda externa  —  Terapia Familiar. Dentre tais mudanças sinalizarei apenas quatro. Em primeiro lugar,  a família enquanto grupo perdeu suas funções privadas. Por exemplo, a escolarização, passou para uma instituição fora da família. No início do século, as mulheres não iam à escola, os professores iam à casa. A família tinha uma série de funções que hoje em dia são da alçada de instâncias coletivas. A vida familiar sofreu desdobramentos. Deixou de ser uma vida fechada dividindo-se em três. De um lado a vida pública da profissão, principalmente em termos da mulher para quem adquiriu uma ênfase anteriormente inexistente. É raro, hoje, a mulher educada para ser dona de casa. Em segundo lugar, a vida privada familiar, ou seja, a vida do grupo familiar e em terceiro lugar, parece-me que o mais importante, a vida particular de cada um. O que se observa na grande maioria das famílias é a vida particular, privada, individual se sobrepor à vida do grupo familiar. Avaliando-se a família de maneira global, percebe-se uma mudança nas características das pessoas, em suas características individuais. O indivíduo perdeu muito das suas qualidades de sujeito operante e se transformou realmente em objeto de consumo. É o predomínio intenso da busca do prazer individual. Ou seja, dentro da vida familiar o prazer individual tornou-se a meta, que se sobrepõe ao grupo. Significa que o prazer individual  transformou-se em obrigação da família. A família tem a obrigação de  satisfazer às necessidades, os desejos e às demandas de cada um. E no momento em que o grupo não é capaz de satisfazer tais demandas individuais, a solução mais rápida, mais prática, é abandonar a família. Ocorre a fragmentação da família, e daí o número excessivo de casamentos e re-casamentos.

     Uma terceira mudança na vida familiar; se considero família e sistema social como inseparáveis, um como causa e efeito do outro, do momento em que esse sistema familiar passa por uma situação de esvaziamento, principalmente de valores éticos e afetivos, o sistema social se esvazia, surgindo a predominância dos valores materiais. É a cultura do consumo, na qual o TER é o aspecto predominante. Atualmente a relação pais e filhos é uma relação frequentemente pontuada pelo TER. As trocas centram-se nos bens materiais e de consumo. E uma quarta mudança muito importante em termos da família é aquela que ocorre na estrutura do poder familiar. Ao deixar de ser um grupo hierarquizado a família passou a buscar uma igualdade idealizada e utópica. O atual exercício do poder se caracteriza por uma grande desorganização. Ao atendermos uma família surge frequentemente inversão no exercício da autoridade. Quem é realmente o responsável: a criança pequena sem a presença dos pais, a empregada que comanda tudo, a amiga que interfere? Considero a questão do poder muito importante, pois o homem como ser social, o tempo todo exercita o poder. Em última instância, somos opressores ou oprimidos, estamos submetendo o outro ou sendo submetidos. No momento em que a família, matriz da personalidade individual, deixa de ser capaz de preencher a função da aprendizagem do poder, surgem conseqüências a nível do macro grupo. Esta é sem dúvida, uma das causas de grande parte da desorganização social em que vivemos hoje. A situação do poder na família é muito bem retratada numa música do Ultraje A Rigor, chamada “Rebeldes Sem Causa”:  “meus dois pais me tratam muito bem, dão apoio moral, carro, dinheiro, uma guitarra. Não pedem explicações e, o que é mais grave, me compreendem totalmente. Não vai dar. Assim não vai dar. Como é que eu vou crescer sem ter com o que me rebelar”.

        Os acontecimentos mundiais da década de 60  –  Woodstock  –  Maio de 68 e outros, tiveram como um de seus principais objetivos a quebra dos rígidos padrões sócio-culturais então existentes, ou seja, a busca de uma maior liberdade em termos individuais e coletivos. Aqui no Brasil a história seguiu o caminho exatamente inverso: vivemos a ditadura, a rigidez, enfim toda aquela tragédia. Creio que a minha geração, a geração da maioria dos pais atuais, a geração acima de 40 anos, vive o que chamaria de “Síndrome da Utopia Familiar”. Nossa expectativa era de que passada a tempestade e pela experiência de uma adolescência e juventude sob o jugo daquela autoridade tirânica, íamos construir uma família maravilhosa na qual tais problemas jamais iriam se repetir. Utopia tem como definição a crença na possibilidade de encontrar a solução final para todos os problemas. Uma das conseqüências,

mais óbvias, dessa síndrome da utopia familiar é exatamente esse boom esotérico, do qual nós psicanalistas vivemos as conseqüências. Hoje em dia é muito mais prático sair botando uma pirâmide, mudando as cores da roupa, da casa, queimando incensos e fazendo terapias mágicas e rápidas, do que mergulhando sofridamente em seus próprios conteúdos. A Síndrome da Utopia Familiar gerou três tipos de padrão de comportamento familiar que me parecem claros. O primeiro tipo, é um padrão de comportamento que chamaria de Introjetivo. Caracteriza-se por um profundo e doloroso sentimento de insuficiência pessoal, uma incapacidade de atingir aquele objetivo tão idealizado. O sujeito diz: “minha família fracassou porque eu fracassei, porque eu não fui capaz de dar à minha família aquilo que ela precisava”.  Esse fracasso cresce dentro das pessoas e gera depressão, afastamento, solidão crônica, e me parece ter uma grande ligação com a questão das drogas e do aumento do consumo de álcool pela juventude. É a solução rápida, momentaneamente indolor e, principalmente de fora para dentro.

         Um segundo padrão de comportamento se caracteriza pela questão dos Adiamentos e faz-me lembrar de um ditado que minha avó dizia quando eu era criança, e dizia “depois eu faço, depois eu vejo”. Ela dizia o seguinte: “antes viajar esperançoso, do que chegar”. Isto porque a chegada pode significar ter que se defrontar com o fracasso, com a quebra da idealização. Tal padrão é claro dentro do grupo familiar, através, por exemplo, da retomada dos chamados ritos de passagem. A volta dos casamentos na igreja, as cerimônias lindíssimas, aquele conto de fadas e, então, a expectativa de que a vida de casal vai ser maravilhosa, vai ser fantástica, vai ser exatamente igual aquele momento da cerimônia. Ora, sabemos que isso não é realidade, é fantasia. Do momento em que os conflitos e as dificuldades se colocam, a tentativa de lidar com a realidade passa pelo Adiamento: “depois eu resolvo, eu não vou me defrontar com isso, não é bem assim”.

          O terceiro padrão de comportamento familiar, talvez o mais divulgado e difícil de lidar, que eu chamaria de Projetivo. “Eu fiz tudo que eu podia, eu sou ótima, eu sou maravilhosa, mas realmente eu vivo numa sociedade que é podre, corrompida, violenta, etc”. A grande complicação é que na realidade a sociedade em que vivemos também é tudo isso. Entretanto, a sociedade somos todos e cada um. É mais fácil fugir da castração atribuindo a culpa à sociedade. Diria que essa síndrome da utopia familiar, de certa forma ela gerou o que denomino como “a hora do álibi”. Significa que todas as dificuldades, todos os conflitos não resolvidos, todos os adiamentos, tudo, tem sempre uma justificativa. E essa justificativa dificilmente passa por uma confrontação, com as realidades interna e externa do grupo familiar. Creio que uma das características desse grupo familiar do Rio de Janeiro, nesse final de século, seja exatamente a família que vive “a hora do álibi”, onde tudo se justifica.

     Todas estas considerações para finalmente indagar: existe psicanálise de família? Eu diria que existe a terapia familiar de base psicanalítica, ou psicodinâmica, mantidas determinadas características da situação de grupo. A característica primordial é que ao falarmos em família temos que estar atentos para o aspecto de que não estamos falando numa soma de indivíduos, mas na realidade considerando uma totalidade, diversa da soma. Abordar a totalidade significa colocar a existência de um psiquismo familiar com as mesmas instâncias tópicas do psiquismo individual. A terapia familiar psicodinâmica ou de base psicanalítica se dirige exatamente a esse psiquismo familiar. Uma outra característica da família, que jamais poderemos esquecer, é que enquanto grupo ela tem uma história secular, anterior a minha inserção como terapeuta e sua história continua após o contato comigo. Na realidade, ao trabalhar com famílias tenho que considerar que o estranho dentro do grupo sou eu. Isso imprime uma marca muito própria ao trabalho com família.

          Uma última questão diz respeito à técnica do trabalho com famílias que também apresenta especificidades. A característica primordial do atendimento ao grupo familiar é sua tríplice leitura. Num primeiro momento é feita leitura daquilo que considero como sendo um espaço intrasubjetivo, ou seja, uma leitura daquilo que acontece no intragrupo. A partir da percepção do intragrupo percebe-se o intrapsíquico, sua contribuição mais intensa ao grupo. E, ainda a leitura do intergrupos, a inserção social da família pois ela não é uma entidade solta, isolada. Conforme dito anteriormente, a família sofre  influências históricas e culturais.

          O trabalho com a família tem como especificidade essa tríplice leitura de um espaço intrasubjetivo, intersubjetivo e trans-subjetivo. E, por fim, outra especificidade é a presença trans-generacional, quer dizer, pai, mãe, filhos, avós e outros. Tal presença trans-generacional tem uma importância muito grande ao restaurar no aqui e agora do seting terapeutico as identificações projetivas inter-generacionais que podem ser retomadas e elaboradas através da relação família-terapeuta. A terapia familiar não pode ser vista como substituto do trabalho individual. Tem um objeto e um objetivo específico. E, para concluir, creio poder dizer que sua marca é impressa pela possibilidade de tentar resolver os conflitos em seu ponto de origem.

* Psicanalista, Terapeuta Familiar, Coordenadora da VÍNCULO – Oficina Psicossocial.

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