Leandro, um brasileiro – Maria Rita Kehl

  * Maria Rita Kehl

O modo como Leandro chegou à minha clínica, há mais de dez anos, já não foi muito ortodoxo. Era sobrinho de uma analisanda minha, que me fez o pedido em nome dela, não dele: “queria que você conversasse um pouco com o meu sobrinho… ele tem 17 anos, está ficando cego e os médicos não descobrem nada de errado com os olhos dele, mas eu tenho certeza de que foi por causa de umas pancadas que ele levou do pai”.

Jandira foi a única pessoa que conseguiu um padrão de vida de classe média — baixíssima, mas classe média, com direito a analista (baratíssima) e Kitchinette no centro da cidade — numa família entre o pobre e miserável da periferia de São Paulo. Mãe e pai mortos de câncer quando ela era adolescente, alguns irmãos marginais, outros operários, uma irmã doméstica, Jandira conseguiu se valer de sua “boa aparência” para conseguir emprego de recepcionista numa grande financeira e elevar-se um pouco acima de sua origem, com muito orgulho. Eu percebia que para ela o trabalho na análise era uma tentativa de refazer o laço que a ligava a uma origem tão triste e aparentemente tão distante, e ao mesmo tempo — por isso mesmo — tentar garantir uma diferenciação já conquistada, evitando este destino terrível da neurose que é a repetição dos sintomas dos pais.

Ao mesmo tempo, Jandira tomava sua análise como sinal de status, de modernização, de civilização. Era a única analisanda que me presenteava, anualmente, no dia do aniversário de sua análise — a única também que sabia a data exata em que começara a se analisar. Pedir que eu conversasse, ou que eu “desse uma olhada”em seu sobrinho, como se eu fosse médica ou oculista, era também pedir que eu ajudasse mais um da família a sair da favela em guarulhos e vir para São Paulo, como se a análise fornecesse o passaporte do subúrbio para a metrópole, do atraso para o desenvolvimento, da condição subumana da vida nas favelas para a condição humana.

Por curiosidade, por militância, por onipotência de novata ou por sei lá o que, aceitei conversar com Leandro e arriscar um começo de terapia ao preço de uma passagem de ônibus por sessão — que, por sinal, nunca chegou a ser pago. A curiosidade foi a motivação mais forte: queria testar, na prática, se as manifestações do inconsciente falavam uma língua universal ou se as barreiras de classe, as diferenças culturais e as variações de linguagem impediriam que um garoto de favela se tratasse com uma analista pop, esquerdista, alimentada a Toddy e formada pela Universidade de São Paulo.

Leandro chegou de óculos escuros e bengala branca, uniformizado como qualquer adolescente (camiseta, jeans e tênis) e pedindo licença para fumar. Assim como sua tia — com quem tinha muito pouca convivência — era negro, alto, magro e bonito. Perguntei se ele não enxergava absolutamente nada, e ele disse — só vejo a luz e a sombra das coisas. Perguntei se ele achava que ia ficar mesmo cego ou se era uma crise passageira, e ele respondeu: não sei, antes eu preciso clarear umas idéias que estão meio embaralhadas.

Assim, depois de me contar alguns episódios de sua vida atual numa gíria quase indecifrável para mim, e tentar me impressionar (o que não foi difícil) explicando como havia conseguido um revólver com uns moleques chegados na bandidagem, Leandro disse que na sua família, todos tinham certeza de que a causa da perda progressiva da sua visão foi uma briga violenta com o pai, em que ele caiu e bateu a cabeça. Como foi esta briga? Bom, o caso é que ele sempre tinha morado na casa da mãe, com muitos tios, irmãos e uma avó — mas aos desesseis anos tinha sido mandado para o barraco do pai.

Meu pai bebe, eu não bebo nada. Só guaraná. Meu pai fica violento quando bebe. Foi por isso que minha mãe mandou ele embora. Quando ele volta do bar, eu fico evitando ele porque sei que vai dar briga. Só que um dia não deu prá evitar e a gente saiu no tapa, eu era menor, apanhei prá caralho e ele me jogou no chão. Eu jurei ele de morte nesse dia. Como assim? Eu disse que com dezoito anos ia comprar um revolver e matar ele. Por que só com dezoito? Não sei. Mas agora eu estou com dezessete e já consegui a arma. É, mas agora você está ficando cego. Silêncio. É, agora eu estou parecendo um ceguinho. Silêncio. Você tem certeza de que ainda quer matar seu pai? Silêncio. Não sei… isso aí eu já não sei te responder.

Na sessão seguinte Leandro faltou, na seguinte  contou uma história enrolada de ônibus errados que justificavam a falta anterior, na seguinte atrasou e ficou explicando por que não podia pagar.

Na quinta sessão, entrou dizendo: esquecí de contar para a senhora que eu também vou ser pai. (Assim, sem mais). É meeeesmo???  Pois é, só que eu estou separado da minha namorada. Por que? Bom, é que ela é tia minha. Foi por isso que minha mãe me mandou para a casa do meu pai. Prá me separar da minha tia, que tinha virado minha namorada. (Durante alguns segundos me ví envolvida num delírio nelsonrodrigueano: então a Jandira, hein? Nunca me contou nada! mandou o menino para o meu consultório para que ele falasse por ela!!! — mas não, não era Jandira. Era outra tia).

Leandro continuava falando, e eu retomei a custo minha atenção quase soçobrante. A Jaqueline também mora lá na casa da minha mãe. Ela é a irmã menor da minha mãe. A gente morava junto, entende, ficava tirando uma linha… quando ela tinha treze anos, a gente começou a transar. Eu tinha quinze. Depois minha mãe descobriu e me mandou embora. A Jandira também disse que transar com tia não pode, é igual a transar com a mãe, a gente fica louco. Eu fiquei louco foi depois que me separaram dela. Fiquei seis meses sem encontrar a Jaqueline, e a senhora sabe que eu não namorei mais nenhuma menina? Só pensava nela, só tinha saudades dela. Fiquei pensando que aquela transa não tinha sido só sacanagem, que era mesmo um amor.

Comecei a procurar ela escondido. Ela também estava morrendo de saudades de mim. Só que ela engravidou, e agora eu tô numa fria. Brigado com meu pai, sem ter onde morar, com a vista dançada, como é que eu vou cumprir a responsabilidade de criar um filho? E depois, todo mundo diz que eu não posso viver com a Jaqueline porque ela é minha tia. A senhora, que é psicóloga, também vai dizer que não.

Pensei um pouco — é incesto? Bom, técnicamente sim. Mas incesto dos bons mesmo, daqueles que a Lei interdita desde os tempos do assassinato do pai da horda? Não tenho certeza. Resolví perguntar para o maior interessado. Escuta, Leandro: quero saber se quando você pensa na Jaqueline, você pensa nela como namorada ou como tia. O que ela é para você? Bom, eu nunca lembro que ela é minha tia. Se ela fosse mais velha, como a minha mãe, eu respeitava. Seria diferente. Mas ela é assim como eu, cresceu comigo, fica difícil pensar nela como tia — foi por isso que eu fiz a besteira…

Nesse caso, eu acho que ela é uma namorada como outra qualquer. Você só tem que pensar se gosta dela mesmo, entende? Pra viver junto, criar um filho juntos, tem que gostar bastante, certo?

Depois desta sessão — a última de cinco — Leandro desapareceu. No começo, evitei perguntar a Jandira. Tentava não misturar os canais. Ela mesma não sabia muita coisa dele, porque num fim de sessão chegou a me pedir notícias do sobrinho, que encontrava raramente. Eu disse que ele tinha abandonado o tratamento. Ah… que pena.

Depois, Jandira me trouxe um recado. Leandro não podia mais comparecer porque havia completado dezoito anos e o serviço militar pegou ele. Como? Servir exército? e a deficiência visual? O pessoal no exame médico do quartel disse que ele não tinha nada, e ele está enxergando de novo. (Ufa, pensei. Desistiu de matar o pai.)

Um dia Leandro apareceu sem marcar hora. Na sala de espera encontrei uma família inteira: ele, Jaqueline e o bebê. Veio me apresentar a filha, agradecer e contar as novidades. Tinha feito as pazes com o pai — quando ele soube que eu ia ser pai também, começou a me respeitar. Me deixou construir um barraco no fundo do terreno dele prá gente morar. Quis comemorar comigo, e eu disse prá ele: tá bom, mas o senhor tem que me aceitar do meu jeito; o senhor brinda com cerveja e eu com guaraná. Depois eu casei, e a gente não brigou mais. E a vista, Leandro. Como foi que sarou? Ah… aquilo? Sabe que eu não sei? Do jeito que veio, foi.

Quem ficou decepcionada com o desfêcho da história foi a Jandira. Ela esperava que eu botasse ordem naquela bagunça, explicasse ao sobrinho que incesto é uma coisa horrível, os amantes ficam doidos, o filho nasce aleijado, a sociedade condena.

Depois que ela entendeu que meu papel não era exatamente o do vigário da aldeia, Jandira também desbundou um pouco, confesso. Retomou a história de sua mãe, que havia se prostituído durante muitos anos depois de abandonada pelo marido, e resolveu testar sua vocação, ou sua predestinação, prostituindo-se também. Para isso, interrompeu a análise por seis mese (com data marcada para voltar) e só depois me contou o que andara fazendo. Quando descobriu que podia sentir prazer com um cliente, que podia começar a gostar de ser puta, Jandira largou da “vida”. A mãe prostituta-mártir, sacrificando-se para alimentar os filhos, era mais fácil de suportar do que uma mãe que gozou dos muitos homens que teve.

      Este pequeno trecho de uma psicanálise em condições brasileiras, que dispensa grandes esforços teóricos, não tem o final feliz que aparenta. Nunca mais soube nada a respeito de Leandro. Terá conseguido algum trabalho quando deixou o Serviço militar? Terá sido capaz de sustentar uma paternidade tão precoce, aos dezoito anos, com uma mulher de dezesseis? Está vivo? Teve outros filhos? Virou alcoólatra como o pai? Levou um tiro de bobeira, uma bala perdida, voltando prá casa de madrugada? E as drogas, que de dez anos para cá entraram com tudo na vida brasileira, representando um meio de sobrevivência para tantos jovens subempregados, como terão afetado seu destino?

Quanto a Jandira, afastou-se da análise para tratar uma doença de estômago que se revelou ser um câncer, e até hoje não tive coragem de ligar para o telefone de uma vizinha para saber se ela se curou ou se morreu da doença que matou seus pais. Temo que sim, pois a doença foi descoberta em estado muito avançado. Durante meses, Jandira se consultou no ambulatório de um hospital onde suas dores foram diagnosticadas como gastrite e tratadas com antiácidos. A psicanálise pode muito pouco contra a repetição, em casos como estes.

O que aprendi nas cinco sessões com Leandro e com a tenacidade de Jandira, tentando superar a infelicidade e a miséria que lhe pareciam destinadas, eu nunca mais esqueci: é que o inconsciente não é do sujeito. O inconsciente é social, Impossível escutar Leandro sem escutar um pouco sobre a miséria, a favela, a violência — uma violência que é também própria do desejo, do enorme esforço cobrado pelas pequenas manifestações de esperança em uma vida um pouquinho mais feliz.

Escrevi uma carta ao psicanalista Hélio Pellegrino, que não conhecia pessoalmente mas com quem tive contacto através do seminário Os Sentidos da Paixão, do qual participamos juntos, contando a história de Leandro antes de saber o desfecho desta curtíssima análise. Reproduzo aqui alguns trechos da resposta que recebi dele:

“O caso que você me conta, do rapaz de 18 anos que está perdendo a visão para não matar o pai, é de uma força extraordinária. Trata-se de um Édipo real, concreto, impossível, para além de fantasmas e fantasmagorias. A realidade é, às vezes — como no caso — perfeitamente psicótica. (…) Atenda o Leandro, sem qualquer dúvida. A psicanálise, antes de ser uma profissão, é uma aventura, uma viagem, um empenho existencial, alguma coisa que transcende molduras — e modelos — burocráticos. O psicanalista é o contrário do burocrata ou do especialista. Ele escuta o desejo, debruçado sobre o coração selvagem da vida e, a partir desse polo, se esgalha, ampliadamente, em todas as direções. A energia do desejo percute e repercute em todos os metais, e todos os quadrantes.

Você se pergunta se, sendo da classe média, terá condições de cuidar do Leandro — e das pessoas de baixa renda. Não se classifique previamente, não se rotule, não se catalogue. Do contrário, você estará se prendendo numa camisa de força. Vá em frente. Suas indagações e cogitações já engajaram você”.

Quero terminar este artigo com a palavra daquele que foi um dos primeiros a pensar e praticar uma psicanálise nas condições brasileiras.

*Psicanalista

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