Nem sempre o meu francês é tão gostoso assim – Joel Birman

  * Joel Birman

Pensei em antes de chegar ao brasileiro fazer um rápido percurso da psicanálise brasileira ou psicanálise do Brasil, propriamente dita, e talvez, assim, tentar chegar ao brasileiro. A psicanálise aparece no Brasil nos anos 20, em  torno de dois acontecimentos cruciais:  o pós primeira guerra mundial e um movimento político que vai culminar na revolução de 30.  O que estava em questão é uma certa  quebra do estatuto do poder centrado nas oligarquias rurais, na direção da constituição de uma sociedade propriamente urbana. Uma sociedade onde há uma emergência das classes médias, propriamente dita, e onde aparece todo um novo tipo de gosto, de público, de interesse centrado na expansão das grandes cidades. Correlatamente a isto o que a gente encontra é a emergência de um movimento de renovação psiquiátrica. Então, o que me parece é que a psicanálise vai ter, por um lado, um  lançado, enquanto saber, dentro da medicina e da psiquiatria brasileiras e, por outro lado, ela vai ter um pé  lançado no movimento propriamente de renovação estético-literária.  Na França, da mesma forma, nos anos 20 ou 30,  a  psicanálise começa, por um lado, a penetrar no campo médico-psiquiátrico e, por outro, ela têm toda uma inserção no movimento surrealista. Efetivamente, esses dois discursos psicanalíticos não se colam. Essa era a maneira que, no caso da França, a figura do Lacan vai ser o agenciador da articulação do surrealismo da psicanálise e da psiquiatria. Hoje nos esquecemos que Lacan era arraigado profundamente ao pensamento psiquiátrico. No caso do Brasil, esse surrealismo vai aparecer através da estética  modernista. Tem-se, então, de um lado, toda uma  penetração da psicanálise na psiquiatria pesada brasileira, e na clínica das neuroses e, por outro lado, uma inserção um pouco mais rica da psicanálise em alguns autores do movimento modernista como por exemplo Oswald de Andrade, onde a presença da psicanálise nos seus textos é absolutamente gritante, com toda a clareza de uma  mentalidade eminentemente crítica e anti-conservadora por excelência. A psicanálise, então, vai ter duas inserções diferentes: a presença da psicanálise no seu veio estético e a sua versão propriamente psiquiátrica. Constituiu-se então o esboço institucional da psicanálise brasileira com o surgimento de uma  Sociedade Psicanalítica em São Paulo, que publica inclusive uma revista que a seguir logo desaparece, 

caracterizando assim  o momento inaugural da psicanálise no Brasil. Num segundo momento desta história, ao que me parece, o veio psiquiátrico engole a psicanálise,  a presença literária passa a receber uma atenção mais marginal e se organiza então aquilo que poderíamos chamar de um movimento psicanalítico brasileiro à partir da década de 40 em São Paulo e no Rio de Janeiro nos anos 50, ligado à  Associação Internacional de Psicanálise (IPA). Este novo patamar é diferente da penetração inicial do discurso psicanalítico pela psiquiatria e pelo modernismo, pois se realiza a construção efetivamente de um movimento psicanalítico brasileiro, ligado à idéia de formação de analistas e transmissão da psicanálise. Há toda uma série de obediências e reverências problemáticas à psicanálise internacional, marcando assim a  identidade do analista que se cria então à partir desse movimento psicanalítico, que vai funcionar no Rio de Janeiro, em São Paulo e depois em Porto Alegre como sendo um  movimento inteiramente centrado na constituição de um movimento psicanalítico brasileiro, até a aurora dos anos 60. A partir do final dos anos 60 eclode propriamente um boom da psicanálise brasileira, demarcando um terceiro fenomeno histórico inteiramente diferente.

O fato da psicanálise se inscrever e se transformar num fato efetivo de cultura se deu apenas no Brasil e em alguns poucos países, como nos Estados Unidos nos anos 40,  na França  nos anos 50 e no Brasil e Argentina nos anos 70. Constituiu-se aí uma cultura psicanalítica no seu sentido estrito. São agenciamentos de valores que estão em questão nesse novo momento histórico e me parece que a primeira coisa importante a ser assinalada, no que concerne a isso, é que há uma espécie de identidade orgânica  entre psicanálise e projeto de modernidade. Esse boom psicanalítico representa uma articulação da psicanálise no tecido da cultura, onde há uma renovação espetacular de valores muito fundamentais, no contexto de um processo rápido de modernização, que é o se passou no Brasil à partir dos anos 50, com a modernização do social, com todo um projeto de internacionalização do país, onde ao mesmo tempo que havia uma tentativa de modernização da economia e da sociedade brasileiras havia também um processo de transformação de valores tradicionais. É neste ponto, específicamente, que a psicanálise se rearticula no Brasil. A psicanálise aparece pois, em algumas tradições sociais do Ocidente,  como uma técnica  particular de produção de processos de subjetivação das pessoas, numa sociedade que perde paulatinamente os seus traços tradicionais, oligarquicos e hierarquicos, e começa a se esboçar no horizonte uma sociedade moderno-democrática. Trata-se a psicanálise então, de uma técnica específica de subjetivação, capaz de dar caução à perda dos traços tradicionais dos sujeitos numa determinada sociedade. Repito: tudo isto se deu no Brasil nos anos 70 e na França nos anos 50, exatamente porque nesta época se engendra nestes

países uma radical estrutura urbana. O mesmo  processo se deu anteriormente nos Estados Unidos nos anos 30 à 40, lugar onde ocorreu o primeiro boom psicanalítico internacional.

Então, a psicanálise entra como sendo uma espécie de saber, de técnica e de clínica, um instrumento de trabalho pois ligado à tentativa de tornar possível a reinserção das pessoas em uma sociedade com rápidos processos de transformação, onde os valores tradicionais começam a se romper, e que novos valores são exigidos para tornar factível o próprio funcionamento da nova sociedade que é proposta. Nessa medida, se considerarmos essa hipótese básica de leitura, é preciso considerar as diferentes faces do que vai caracterizar esse brasileiro em questão. Num primeiro momento, que é importante e fundamental  do ponto de vista da constituição de demanda clínica, nessa tentativa de modernização e de criação de novas formas de  subjetividades, é o fato de que o processo de modernização econômica brasileira se intensificou com a ditadura militar, em 1964, e criou-se um  traço particular da psicanálise brasileira, sobretudo quando o boom estourou durante a década de 70, e que foi uma certa identificação da psicanálise com certos ideais libertários. Já que as pessoas não podiam efetivamente fazer a revolução, poderiam pelo menos tentar subverter a sua vidinha íntima cotidiana. Foi exatamente por aí que a psicanálise se reordenou e foi idealizada como sendo uma espécie de grande instrumento de transformação social, na medida mesmo em que ela funcionava como o único espaço possível, neste contexto, de tornar possível a subversão dos valores das individualidades, já que as pessoas não podiam se manifestar de uma outra maneira. Isso, por um lado, criou uma espécie de território encantado psicanalítico e onde se esqueceu da presença de valores altamente conservadores veiculados pelo próprio discurso psicanalítico de então.

Tem-se, então, dois tipos de brasileiro em questão. Aquele de classe média, careta, conservador, que vai buscar a psicanálise para se adaptar à esse novo universo modernizado, para romper os seus elos tradicionais. O outro tipo de brasileiro que surge é aquele que vai à psicanálise em função de um projeto emancipatório. Esses dois brasileiros não são da mesma qualidade, não pertencem necessáriamente ao mesmo grupo social, não se trata dos mesmos personagens. Não realizam pois o tipo de engajamento no divã psicanalítico. Neste contexto, se constituiu a grande profusão de terapias de grupo no Brasil, nos anos 70, inteiramente ligada à um projeto de reformulação da família. Há uma família nova que então se organiza, onde o sujeito se desliga relativamente dos seus familiares de origem, sanguínea e simbólica, criando novos processos de filiação que passa pelos vínculos transferenciais. Quem já se submeteu à experiência de terapia de grupo sabe pois que se cria alí todo um novo sistema de filiação e de parentesco, que numa determinada medida passa a ser mais importante para o indivíduo que

o sistema de parentesco de origem da pessoa. Há então toda uma mediação em jogo, que é a desconstrução da família tradicional, mas que, ao mesmo tempo, é uma nova família que não pode avançar muito nos seus valores emancipatórios, exatamente porque a psicanálise em questão é ligada de maneira ambígua aos valores emancipatórios. aportanto, existiu dois tipos de brasileiros em jogo aqui:  um que vai para o divã em busca de se readaptar aos valores da modernização instituídos, mas que não vive ao mesmo tempo um processo emancipatório;  e um segundo tipo de brasileiro que vai à psicanálise em função do sufocamento da ditadura militar e em busca de se emancipar, criando assim dois tipos diversos de população psicanalítica. Isto não tem nada a ver evidentemente com  as doutrinas psicanalíticas em questão. Chamo a atenção disto porque durante os anos 80  tentou-se criar um certo falseamento desse carteado, como se a  IPA fosse o lugar do conservadorismo e  o pensamento Lacaniano fosse o lugar do discurso da liberdade. Como se  Lacan, fosse um velho militante de esquerda !  Mentira. Isso é uma brincadeira. Lacan é um homem de formação de direita e é bom que a gente não se esqueça disto. Da ação francesa na juventude, ligada ao que há mais de direita na pequena burguesia francesa, das primeiras décadas deste século. Porém, no Brasil em função desse confronto com a IPA, que para mim está ligado à disputa entre médicos e psicólogos, se caracterizou falsamente num confronto entre pensamento de esquerda e pensamento de direita.  Isso é uma coisa falsificada. O que eu quero dizer com isso é que encontram nesses brasileiros que buscam na psicanálise um projeto emancipatório, pessoas de diferentes filiações, assim como a gente vai encontrar o analisando conservador também em diferentes sistemas de filiação. Em verdade isso não vai passar absolutamente pelo sistema de filiação em jogo. Isso vai passar efetivamente pelo tipo de engajamento do sujeito com o processo psicanalítico em questão. Esse ponto é que eu gostaria de caracterizar:  há algo da ordem do tipo de demanda que é feita, e que é acolhida, ou não, onde algo da ordem  do projeto emancipatório pode se dar ou não e o analista pode acolher a isso, seja elê Lacaniano, Kleiniano, ou não.

Há um  terceiro ponto que eu gostaria ainda de caracterizar aqui, aprofundando um pouco mais a oposição entre as idéias conservadoras e emancipatórias nos diferentes sistemas de filiação. Podemos localizar nesse brasileiro que se analisa e  também no analista brasileiro que passa pelo divã, uma espécie de ruído muito curioso que vai marcar exatamente a ruptura e os seus impasses  entre o conservador e o emancipatório, que vem a ser a maneira pela qual se incorpora as idéias estrangeiras, numa  mentalidade eminentemente colonizada, que se repete ao infinito. Há todo um pensamento conservador que acolhe essa demanda conservadora, que incorpora também os discursos importados com extrema facilidade, sejam eles de origem nova

yorkina, londrina ou parisiense, sem colocar em questão certas especificidades da tradição cultural brasileira, na maneira pela qual se implanta o dispositivo analítico. Considero esse ponto fundamental, porque não só do ponto de vista dos analistas que, no seu sistema de formação, se valeram dos discursos importados, numa repetição infrutífera e de um efeito estéril. Se esteriliza com isso a psicanálise do ponto de vista do processo de conhecimento, porém, além disso significa também que a esterilização em pauta se dá também na experiência concreta da clínica, pois ninguém vai me convencer de que um analista que fique utilizando formas importadas e esterilizadas será capaz de no nível de sua prática introduzir alguma coisa que não seja estéril. Ou há então um modelo sem crítica, onde se perde a especificidade desse brasileiro ou, então, tenta-se construir um diálogo entre o modelo que você incorpora com certas particularidades de um suposto sujeito brasileiro. Não obstante o fato de que o sujeito seja universal há evidentemente particularidades a serem consideradas, que seria muito salutar que os analistas pudessem aprender com isso.

O brasileiro que temos de considerar, no seu ethos, é um homem de natureza católica e sobretudo pagã. Um sujeito marcado por  uma dimensão irracional, pela fragmentação e a pertinência  à um conjunto de identidades  que não tem nada a ver com um sujeito  católico francês ou com o protestante norte-americano. Isso quer dizer que esse sujeito é plasmado num universo etnico, ético e religioso, onde o convívio com a pluralidade de espíritos dá  prá elê um outro tipo de funcionamento mental, uma outra relação com o tempo e o espaço, uma outra relação com os bens simbólicos, inteiramente diferente daquilo que se dá  no sujeito europeu, católico, ou aculturado na tradição protestante norte-americana. Então, para  caracterizar  essa diversidade, para que possamos se aproximar desse brasileiro, hoje, isto é,  daquele que vai ao nosso divã, e que estejamos mais próximos do que denomino aqui de uma certa demanda de psicanálise que passa pelo ideal emancipatório, significa reconhecer que, em função do fato que nós temos uma formação etnica e religiosa em particular, não podemos nos esquecer a nossa relação com o tempo e o silêncio quando a gente coloca  formas Lacanianas ou Kleinianas. Com efeito, relações com o tempo e a palavra são completamente diferentes das do europeu e do norte americano. O brasileiro não se relaciona com o silêncio tal qual o francês. Não porque seja perverso, mas sim porque sua relação com o outro é de outra ordem. É nesta modalidade de relação com a alteridade que devemos repensar a prática psicanalítica no Brasil, na sua especificidade étnica, ética e política.

 * Psicanalista, Professor Titular do Instituto de Psicologia da UFRJ e Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da UERJ.  

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