Psicanálise “com” brasileiro – Ruth Helena Pinto Cohen

 *Ruth Helena Pinto Cohen

                Enquanto campo Freudiano a Psicanálise é uma só em seu aspecto universal  e se faz no particular na pesquisa do Inconsciente.

          Psicanálise com crianças, Psicanálise com franceses, com brasileiros. O que identifica é a relação do sujeito com o significante. Não há dúvida de que se queremos falar de especificidade, ou seja, de significantes brasileiros, teremos que mexer nos tecidos imaginários que proliferam no Brasil; inevitavelmente teremos que ir às origens e buscar na historicização a fundação do que supostamente seriam algumas marcas identificatórias que poderiam traçar o conjunto de brasileiros.

       Se o universal deve ser abordado no particular, o Inconsciente enquanto modalidade lógica é possível, ou seja, o que cessa de se escrever, que escapole, deixa-se vislumbrar nas aberturas e fechamentos, em suas formações (sonhos, lapsos e etc…). Se por um lado a Psicanálise admite que não há Inconsciente coletivo, a Repetição, como conceito fundamental na obra freudiana é universal  ¾  não cessa de não se escrever  ¾  na lógica do impossível (\”¯).                                                                                          

           Quando repetimos, repetimos sempre algo que nos escapa, ou seja, o traumático.

           É a partir dessa hipótese que a Repetição como universal, se realiza no particular do inconsciente, na repetição da falta, no rastro do traço unário. A partir dessa premissa, posso ousar dizer que dos traços fundantes da história do Brasil, repetimos sob forma de identificação simbólica, traços (Ideal-do-Eu), o impossível, a falta. Criamos, também imaginariamente, uma cara para o Brasil nas identificações projetivas (Eu-ideal). Se seguirmos a hipótese de que as primeiras identificações são incorporações de que o que cuspimos hoje é o que engolimos outrora, temos que lembrar de nossa fundação. Os primeiros significantes brasileiros são indígenas que, em sua antropofagia, ensinavam-nos que devíamos comer o que tinha valor. Mas sabemos que a identificação não se dá com o igual.

          O conjunto de brasileiros nem sempre engoliu coisas boas. Freud em sua célebre frase “usamos a moeda vigente no país que exploramos”1, fez-me pensar que nossa moeda atual é o Real. O Real que retorna do real colonizador do índio brasileiro, o português.

        Darcy Ribeiro definiu os índios brasileiros de nossa origem, como “miríades de povos tribais, falando línguas de um mesmo tronco, dialetos de uma mesma lingua”2.

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 1 Dois Princípios do Funcionamento Psíquico.

Ribeiro, Darcy  “O Povo Brasileiro”, Companhia das Letras.

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          O nosso tronco foi cortado; o nome próprio que é dado pela linhagem paterna e que deve interditar a terra-mãe, foi dizimado. Do Pau-Pai-Brasil e do índio, criança polimorfa brasileira, sobraram restos, à margem, não do Ipiranga, mas da dita civilização. Se alguns índios falavam a língua “jê”, na Psicanálise francesa, “jê” é o sujeito do Inconsciente, tradução do “Isso” freudiano. Esse Isso ou esse osso que era duro de roer. O índio deu trabalho à realeza, era rebelde à escravidão e como o infantil, irrompia, rompia, sujeito-barrava o invasor. Como suas alianças eram passageiras e ele não se assujeitava aos moldes europeus, foi substituído pelo escravo negro nos trabalhos pesados.

         O “achamento” do Brasil, estabeleceu uma lei estranha, uma mensagem, um código que estabelecia que tudo era possível e escravizável. Em nome do pai, Deus entrou de gaiato nessa história. Eis um significante que marca a história do Brasil: “Deus é Brasileiro”, e assim, o povo fica protegido imaginariamente.

        Chico Buarque ao proclamar “Essa terra ainda vai cumprir seu ideal, tornar-se-á um imenso Portugal… um império colonial”, denunciou a identificação com o invasor, ou melhor, colonizador.

         Desta fundação, deste traço unário, marca da função paterna, identificação Simbólica, nasceram alguns significantes brasileiros, ou seja, O “Jê” colonizado transformou-se em “moi”, “O Eus”, imagens brasileiras, identificações com duplas mensagens. Sujeitos divididos por significantes contraditórios. Colonizador X  colonizado.  Portugues  X  índio.  Mamelucos, “mame-lucros”.

          O filho, na situação edípica, quer ser como o pai e ter, como ele, o falo. Ser colonizado e ter como colonizador, fazem dos primeiros brasileiros, colonizadores de sua própria terra.

             A certidão de nascimento do Brasil, escrita por Pero Vaz de Caminha, já indicava o futuro do Brasil. “É uma terra boa, em se plantando tudo dá”.

       A identificação imaginária desses brasileiros era marcada pelo paradoxo de sentirem-se superiores aos nativos e inferiores aos colonizadores. É assim que brasileiro passa a colonizar brasileiro. Não parece extinto este significante, que até hoje se repete em quase todos os setores de nossa cultura. O que vem do estrangeiro é sempre melhor, do shampoo, ao sapato, e todos correm para ouvir e valorizar os psicanalistas que falam línguas diferentes.

             Mas o Brasil produziu diferenças. Como a identificação é com o significante, e este, segundo Lacan, é pura diferença, alguns produtos, como Gregório de Matos, o “Boca Maldita”, “Boca do Inferno”, vieram denunciar em brasileiro que algo novo nascia: a primeira gíria, a primeira palavra em brasileiro. Não era mais pura imitação da literatura portuguesa. A fala brasileira começou a aparecer marcada também pela língua africana. Sabemos que tudo começa com a boca, com a voz, com o som. O seio negro foi incorporado à boca branca de sua majestade o bebê português. Nessas bordas onde o que se suga é sugado, se faz chupar na pulsão oral. As misturas significantes criaram rede. Tecido da fantasia, do que vai marcar um a um os brasileiros, efeitos sujeitos de discursos.

              O discurso português, cuja língua deriva de um idioma sintético é apesar disso  analítica, trouxe como marca diferencial o “infinitivo pessoal”, que segundo Mendes de Almeida, é um “idiotismo português”. ÍDIOS quer dizer próprio e traz o paradoxo de que nenhuma desinência pessoal deveria ter forma de infinitivo. A língua portuguesa se impõe à indígena, sobrando a influência Tupi a topônimos (Abaeté, Icaraí, Maracanã, etc), a antropônimos (Araci, Jacira, etc) e à fraseologia como “andar na pindaíba”, sendo a pindaíba uma fruta rara, que originou a expressão. As línguas africanas, por sua vez trouxeram influência marcante à fonética (Nagô), nas aglutinações, na entonação, na cadeia sonora, partindo da proposição de Lacan de que se o efeito sujeito é o que um significante representa para outro significante, o conjunto de sujeitos brasileiros, trazem na língua como fato social, segundo Saussure, um estilo próprio. O lexicográfico, o cultural, o sintático, marcam traços brasileiros, na língua portuguesa. A língua fundamental, entretanto, persiste enquanto sintaxe. A “alíngua” por outro lado marca em cada brasileiro um sujeito do inconsciente, efeito de linguagem. Não há como falar de Psicanálise de brasileiro, mas com brasileiros, ou seja, apenas podemos identificar as especificidades da Psicanálise no Brasil. Queiroga, por exemplo, escrevia no que chamava de língua luso-bundo-guarani.

           Se nos utilizarmos do descritivismo kripkeano, a palavra Brasil veio de Pau-Brasil, mas o rechaço do Pau, o significante dessa falta (falo), fez falar brasileiro em português. Esse ideal-do-Eu é o motor do coletivo.

              A título de curiosidade, recentemente ergueu-se no Rio de Janeiro, na rua Visconde (palavra de origem portuguêsa) de Pirajá (indígena) um monumento, que não é pau, é pedra, só espero que não seja o “fim do caminho”3. Esse significante da falta, o falo, retorna no Real também como moeda-criança-brasileira, nua como o índio, selvagem no meio do trânsito, cobrando uma dívida simbólica impagável.

             O Pai “Real” português, não era o pai da alteridade, mas da autoridade. Não o que promove a lei e o desejo, mas como Lei do Desejo4, onde a fantasia de brasileiros tenta a travessia desses fantasmas com passagens ao ato. Atos transgressores, homocidas, suicidas. É aqui que nascem os anjos?5 Os pixotes? Crianças brasileiras, letra de música: “O meu guri, olha aí… me trouxe uma bolsa com tudo dentro, chave, caderneta, terço e patuá. Um lenço e uma penca de documentos. Pra finalmente eu me identificar” 6.          

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3 Alusão à  música popular brasileira.

4  Alusão ao filme “Lei do Desejo”

5  Alusão ao filme brasileiro “Como Nascem os Anjos”.

6  Letra de Chico Buarque de Holanda

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Desindianizando o índio, desafricanizando o negro, desidentificando, criou-se o conjunto de brasileiros.

                 Significantes brasileiros podem ser colhidos, por exemplo, das manchetes de jornal: “O Rio está na final!”ou o Gabriel, não o anjo, o pensador que não é do Rodin, dizendo: “Os homi do COI (Comitê Olímpico Internacional) tão vindo aí: vamos botar professor na escola, polícia nas ruas, rezar para não chover… depois a gente volta ao normal”. O “Arrastão da Ordem”, o “Rio Prisma”, o que será que isso quer dizer?

                A mídia denuncia, o artista interpreta e o analista recolhe as meias-verdades entre-ditas que restam dos ditos discursos. O lugar do analista é o de ocupar o lugar de semblante de buraco, depositário do lixo humano, das lixeiras brasileiras: consultórios, hospitais, creches comunitárias, escolas públicas e particulares, lugares onde sempre trabalhei e posso dar algum depoimento de que na pesquisa do Inconsciente, o que marca a diferença é que cada discurso tem um lugar preciso onde condensar seu gozo. E mesmo onde não há discurso, crianças muito pequenas, por exemplo, trazem em seus apelos a interpretação de um sintoma, seja ele familiar ou social.

                 “O Plano Pai” de saúde; a “Criança Esperança”, são denunciadores de como a lei ainda manca como Édipo Rei. O reizinho, sua majestade o bebê, sabe o lugar de onde reina na fantasia dos pais. Ele detém as verdades parentais. O menino de rua cobra gozar como o Senhor, que usufrui da mais-valia no sistema capitalista. O Real implode e explode na bala perdida, nos pênis cortados, nos assaltos armados.

                 A lei do gozo, que muitas vezes identifica o brasileiro como um “gozador”, talvez seja uma forma possível de transformar esse gozo em alegria; em carnaval; de atuar a fantasia desviando a pulsão de seu alvo (Ziel). O brasileiro é um sublimador por excelência. É artista, criador, torcedor. O carioca, por exemplo, se proteje entre as mamas do Pão de Açucar e os braços abertos do Cristo Redentor. Ele ergue imagens para apaziguar suas angústias. Se no antigo Brasil, uma negra bonita valia por dois negros fortões, hoje, qual o valor do brasileiro? A dívida simbólica impagável sendo cobrada no espelho criança, revela o infantil, o recalcadao em nós.

                 Macunaíma não é à toa um herói brasileiro, um mito que Mario de Andrade criou com precisão: Era filho do medo, da noite, comeu a mãe, descobriu que a máquina matava o homem, mas que o homem fez a máquina. Que o homem era a máquina. Macunaíma, criança-homem brasileiro, queria ter a pedra, mas como dava muito trabalho preferiu colecionar palavrões. É filho do Diabo. Nome-do-Pai. Sintoma brasileiro.

                 Oswald de Andrade, precisou ir para Paris para descobrir o Brasil. Escreveu em brasileiro a poesia “Pau-Brasil”. Surgia, aí, em forma simbólica, o que, no Real, havia sido cortado.

          Alguns brasileiros repetiram as marcas fundantes, resgatando os sintomas, transformando-os em bons sintomas. São os que conseguem dar o “pulo do gato”, ou seja, repetir o mesmo diferente, saltar na abertura para o futuro.

               O povo brasileiro nada mais é que uma borda, um limite e nas eleições, por exemplo, os laços se rompem e o conjunto Brasil, vira letrinhas soltas, PMDB, PSD, etc, atomizadas, partidas. As verdadeiras eleições já foram feitas, seja democracia, socialismo, monarquia ou anarquia.

                  Na minha hipótese, Psicanálise é com brasileiro, ou seja, com o infantil, que comanda o caminho de todos nós.  Se a criança foi registrada no documento de Pero Vaz de Caminha, onde dizia que a terra era boa e que “em se plantando tudo dá”, a interpretação dessa mensagem pode não ser darmos tudo ao Outro demandante, mas, como o jabuti, representante do imaginário brasileiro, da esperteza, da astúcia, talvez não nos deixarmos engolir. Psicanálise no Brasil é deixar que a clínica e a teoria psicanalítica tenham liberdade de interpretar a letra freudiana a partir do que aqui encontramos. Não nos submetermos a regras impostas por supostos senhores do saber. Ter direito aos escritos de todos os pensadores em suas diferentes formas de interpretação da causa freudiana. Fazer rede, tecer cada um sua própria roupa e vestir de acordo com o seu estilo. Não há Psicanálise internacional, mundial, regional, etc. A Psicanálise é Universal enquanto campo Freudiano, mas é também criada a cada sessão de cada paciente no dia-a-dia. O analista não existe, o que existe é a análise onde o lugar de analista se forma como as formações do Inconsciente na abertura e no fechamento.

                     Se o discurso do analista é um discurso sem palavras, entretanto, traz na contra-corrente do discurso do Senhor, não a produção da mais-valia, mas a letra (S1), a mestria produzida pela errância do corte no gozo do Outro. Analista não faz grupo, não tem colega. Sua função é fazer falar. Analista e artista tangem as verdades em dois campos que, às vezes, fazem interseção. Termino, portanto, com a palavra do artista Caetano:              

 “Para que hoje a família se transforme e o pai seja pelo menos o Universo.  E a mãe  seja no mínimo a Terra”. Ou “Tudo de novo: minha mãe, meu pai,  meu povo… Eis aqui tudo de novo… Grande como a dor do mundo. Vamos  fazer uma festa. Noites assim como esta. Podem nos levar pro tom.”  

Brasil, mas quem pariu?

 * Psicanalista

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