Psicanálise de brasileiro – Carlos Alberto de Mattos Ferreira
* Carlos Alberto de Mattos Ferreira
“Pode-se afirmar que também a comunidade desenvolve um superego sob cuja influência se produz a evolução cultural. O superego de uma época da civilização tem origem semelhante à do superego de um indivíduo.
O superego cultural desenvolveu seus ideais e estabeleceu suas exigências. Entre estas, aquelas que tratam das relações dos seres humanos uns com os outros estão abrangidas sob o título de ética.”
( Freud, in Mal-estar na civilização)
Diante da perspectiva de apresentar um trabalho que trouxesse à tona uma reflexão sobre o tema proposto, vi-me diante de questões/impasses tais como: podemos falar em psicanálise de brasileiro?
Ao entrarmos no campo da psicanálise certamente estaremos nos referindo à análise de sujeito, contados um a um. Enquanto produção analítica é impossível pensar em psicanálise de grupo.
O discurso que funda o desejo é produto de uma situação particular, dizendo respeito a alguém, qualquer um de nós, que diante de sua existência busca decifrar o enigma do seu destino, de sua história e de sua vida.
Paradoxalmente, quando me remeto ao conceito “brasileiro” associo-o automaticamente à noção de identidade, essa categoria que por sua constituição identificatória de grupo e comportamento social atua, muitas vezes, como um impedimento à assunção de um sujeito desejante, diferenciando-o do coletivo que, não raro, lhe rouba um nome próprio.
Como categorias aprisionantes de imagens e significantes exemplifico uma certa sujeição na concepção que se apresenta como psicanálise de aidético, de canceroso, de heterossexual, de homossexual, de cego, de surdo, de deficiente mental, de médico, de engenheiro, de drogados, enfim de uma
infinidade de lugares comuns com traços classificatórios afins que, para um analista cobrem, criam um véu dessa condição de sujeito.
Diante desse véu que “proteje” e “anula” o sujeito, algumas linhas psicanalíticas podem considerar como uma resistência, outras de contra-transferência e, outras ainda, como um tratamento possível.
Se, por um outro lado esse lugar de analista é uma construção produzida na transferência de um ao outro, como pode-se pensar na possibilidade de uma demanda a um sujeito suposto saber, por parte de um grupo social ?
Como pode o fato de ser brasileiro interferir nesse drama ternário pai/mãe e sujeito onde este último se constitui desejante nesse seu para-além particular e, ao mesmo tempo universalmente inscrito nesse conflito irredutível em ser humano ?
Onde situar, diante do grupo, essas marcas neuróticas que o mal-estar produz e que aponta para o mito da felicidade como objetivo de vida, como um fim da pulsão ?
Se a questão do sujeito é a do seu destino e da felicidade, o que dizer então de qual é a questão do brasileiro.
Há, sem dúvida, reflexões sobre até que ponto algo da identidade marca uma inscrição identificatória e aprisiona o sujeito no coletivo, por traços comuns e distintos no que concernem a existência de tantas e diferentes culturas.
O que vem a ser, enfim, o brasileiro ?
Que elementos sustentados nessa lingua de origem lusitana marcam esse imaginário que povoam esse mundo mítico carregando de significantes constituintes desse que ouviu as histórias do saci-pererê, do boi da cara preta, do Jeca tatu, do Curupira, do Santo Antônio, do do Negrinho do pastoreio, além dos clássicos contos de fadas.
Sabemos o quanto estas lendas e histórias da literatura e do folclore são organizadoras de um certo imaginário infantil. As crianças sustentam suas fantasias, seus fantasmas, sua economia pulsional, etc. com esse suporte mítico passado de geração para geração.
Quando um adulto ousa mudar o rumo de uma história, por exemplo, dizendo que o Chapeuzinho Vermelho comeu o lobo, ou que o príncipe não veio acordar a Bele Adormecida ou que o Curupira colocou fogo na floresta, as crianças brigam, relutam e insistem na confirmação do destino traçado para aqueles personagens.
Uma mudança nesses enredos desorganizam toda uma ordem significante que sustenta esse imaginário infantil.
Isso sem contar a tão presente tendência a repetição do tipo: — Conta de novo aquela história! E o pai, a mãe, a avó, a professora, etc. contam, recontam e repetem dias, semanas, e, às vezes, meses aquele enredo que tem um significado especial para cada um de nós.
Outro aspecto relevante desse contexto imaginário é a máxima marxista onde um homem se constitui humano a partir da imagem de um outro homem, de um semelhante. Essa construção influencia a psicanálise, especialmente no que tange aos conceitos de identificação, mais valia e sintoma, entre outros.
Partindo dessas premissas imaginárias onde um ser humano se constitui enquanto marcas de um processo sócio-histórico (imagem de outro humano) e enquanto desejo (desejo de um outro), foquemos alguns aspectos de nossa “realidade”.
Constatada a má distribuição da riqueza, a miséria absoluta, a violência urbana e rural, a multiplicação das favelas e dos sem-teto em contraste com mansões, latifúndios, “grades urbanas” e seguranças, pode a psicanálise resolver ou ajudar a dissolver esse mal-estar social ?
Parece que tanto no espaço geográfico, quanto no tempo histórico, a miséria acompanha a humanidade e parece mesmo ser “miséria em qualquer canto: para índios, mulatos, negros e brancos”[1] .
Não estou justificando a miséria, mas antes disso, constatando-a na história de nossa civilização.
Mas vamos supor que a psicanálise possa vir a contribuir para ajudar a regular as relações entre os homens, especialmente no que diz respeito à exploração do homem pelo homem, como objeto de mais valia. Que caminho seguir ?
A modernidade trouxe consigo uma fé na justiça social através da tecnologia que, ao que nos parece, falhou.
Os ideais comunistas que creditavam ser os homens inteiramente bons e que o mal estava na propriedade privada, parecem ter sucumbido junto com o muro de Berlim.
Aceitarmos ativa e passivamente a imposição de um modelo capitalista neo-liberal que nos rege sob a égide da globalização e constituído na ficção da livre iniciativa, onde todos partem com as mesmas oportunidades ? Essa hipocrisia, opressiva do “mercado livre onde”, no salve-se quem puder, um parte com a fábrica de cimento e um outro com o tijolo nas mãos ?
Nestas iguais condições de seleção neo-darwiniana, estilo Smith-fim-de-milênio, vocês não acham que a violência urbana dos pivetes e marginalizados não tem, por mais paradoxal que pareça, um certo ar de saúde, de luta, de grito, de resistência, diante da hipocrisia informatizada do nada ?
Diante desse “superego cultural” que Freud descreve, como será inscrever esse traço do social que deveria representar utopicamente essa dupla função paterna de lei: a interdição e a proteção. Como se espelha, diante de certos contextos, essa marca de identidade, de laço, do comum, do que faz um grupo…?
Eis um fragmento de pesquisa realizada junto aos professores da rede municipal de educação2 – RJ – 1995 e da rede particular de ensino sobre sexualidade e violência:
Entre vários temas abordados perguntamos a crianças que moram em favelas e crianças de classe média, como é ser polícia e como é ser bandido?
Respostas:
Como é ser polícia?
Crianças classe média Crianças de favelas
· Defender e proteger a humanidade · Policial = bandido
·Arriscar a vida pelo pão de cada dia · Informante de bandidos
·Defender as leis · Eles também roubam, matam, cheiram e fumam
·É terrível, é viver pouco · Eles fazem negócios com os bandidos
·Salário vergonhoso · Incerteza do regresso
·É ter responsabilidade e respeito · Tem polícia que mata as pessoas
·Proibir venda de drogas · Sofrimento (seu e familiares)
·A polícia prende o ladrão · Risco/morte/sem poder.
· A polícia e Deus protegem a gente
Como é ser bandido?
Crianças classe média Crianças de favelas
· Ser burro · Não trabalha, rouba, cheira e mata
· Sofrer · Influenciar amigos
· Ridículo/ilegal/violento · Morte prematura
· Amanhecer cheio de tiros · Armamento sofisticado
· Pegar o caminho de ida e não poder voltar · Desvalorização da vida
· Ficar no morro e ver o mundo inteiro · Liderança
· Não amar ninguém · Falta de afeto dos pais
· Ter armas pesadas · Porque não conseguiu nada na vida
· Ter dinheiro fácil · Ele respeita o morador da favela
· Ser drogado · Não respeita as pessoas e mata.
Parece-nos claro estarmos falando de duas leis (ou mais) numa mesma cidade.
Essa leizinha , que está aquém (ou além) da lei simbólica que nos fala a psicanálise, pode ser exercida tanto pelos traficantes quanto pelos representantes do Estado, pois parecem ser a mesma coisa.
Entre outras possibilidades é a condição para que existam Robin Hoods de 17, 18, 19 e 20 anos (geralmente, no máximo) para, temporariamente, exercerem seus efêmeros mandatos e perversa autoridade.
Robin Hood do morro. “Os pobres são como podres”. 3
Quem é, enfim, mais perverso ?
— A culpa é da educação!, falam muitos com “as bocas escancaradas cheias de dentes”4.
No entanto, algumas escolas e professores de periferia são vigiados pela lei do tráfico: quem pode entrar e sair, o que falar e ouvir, do que falar e do que calar.
Calar-se! Silêncio!
Fechem os vidros dos carros! Tranquem suas casas! Coloquemos mais muros!
Onde estão as guaritas, os pedágios e o gradeamento da Barra da Tijuca?
Quem é o prisioneiro de quem?
Quem oprime quem nessa cidade partida?
A miséria ou a riqueza?
Até quando vamos nos submeter às marcas e carregarmos as culpas deixadas pela “casa-grande e a senzala” em nossa inscrição de brasileiros?
Insiste, contudo, em mim esse lugar desconfortável que a psicanálise funda e exclamo:
— Misérias, guerras, exploração, mal-estar! Não é essa uma marca da humanidade? Não parece ter sido sempre assim?
Não! Não me leve a mal ! Eu só perguntei prá duvidar.
Afinal (apesar dos tiros que ouço no momento em que escrevo) eu também quero ser feliz.
E, até que ponto a felicidade depende do social?
* Psicanalista
[1] Letra de Miséria. Arnaldo Antunes, Paulo Miklos e Sérgio Brito.
2 Amostragem selecionada de respostas obtidas pelos professores, com seus alunos.
3 Letra de Haiti. Caetano Veloso e Gilberto Gil.
4 Letra de Ouro de Tolo. Raul Seixas.