Psicanálise de brasileiro – José Carlos Guedes

*José Carlos Guedes

“De manhã escureço A noite a morte Passo por passo
De dia tardo Contra quem vivo Eu morro ontem
De tarde anoiteço Do sul cativo Nasço amanhã
De noite ardo O este é meu norte. Ando onde há espaço:
Outros que contem – Meu tempo é quando”.
Vinicius de Moraes (Poética I)

Há pouco se fazia noite O relógio marcava em torno de 20h de uma quarta-feira. Após um
dia de trabalho em minha clínica, despreocupadamente, a passos lentos, envolto em minhas
abstrações, atravessando a Praça Santos Dumont, na Gávea, Rj. Lá ia eu, fumando o meu
cachimbo. Ao passar por um dos bancos desta praça, me deparei com três meninos que
deveriam ter, nove, dez e treze anos, presumivelmente. Estavam mal vestidos, roupas sujas,
pés no chão. Mestiços, fiéis representantes de nossa raça, que por mais de uma das nossas
incompetências, chamamos de meninos de rua.
Dirigindo-se a mim, um deles falou: – Olha o charuto dele. Aproximei-me e com um ar terno
e uma postura acadêmica, tirei o cachimbo da boca e expliquei: – Isto não é um charuto é um
cachimbo… quando o mais velho dos três, interrompeu-me e disse em alto e bom tom: – É o
cachimbo da paz. Se eu pedir para dar uma tragada, ele vai dizer: não se meta comigo, rapaz.
AS cartas estavam à mesa. Nada mais havia para ser dito. Nos entreolhamos. Segui em
frente, impactado e emocionado pela força do encontro e pela sutil e contundente clareza
daquele repente, deflagrador de nossas contradições. As vísceras estavam expostas, não tinha
mais como disfarçar a miséria, a fome, a rebeldia e a latente luta de classes. Por mais generoso
que se tente ser, não se pode conciliar o inconciliável. Ali estava marcada a diferença, nesse
embricamento do social e cultural.
O Brasil não conhece o Brasil. Por mais que ele insista em se apresentar em cada esquina,
estamos sempre tentando nos esquivar para não conviver com o desconforto e o mal-estar do
pertencimento.
Certa vez numa reunião de psicanalistas, quando falei da necessidade de sairmos da
proteção estofada e refrigerada de nossos consultórios para pormos a mão na massa, ouvi a
seguinte pérola, de um chamado didata: “massa para mim é massa de croissant”.
O psicanalista brasileiro não conhece o brasileiro e na maioria das vezes, não se re-conhece
brasileiro. A origem de classe, as titulações acadêmicas concedidas pela universidade
burguesa, o prestígio dentro das sociedades de Psicanálise, são um alimento narcísico
perigoso, que pode levar a uma apatia e a um distanciamento da nossa realidade, da nossa
condição de brasilidade. Corre-se o risco de se fazer uma Psicanálise referida a um

determinado grupo social, ensimesmada em similitudes de um sistema simbólico auto-
referente.
É muito atraente e sedutor gozar-se inadvertidamente, das benesses e facilidades
promocionais oferecidas pelo sistema capitalista. Só que isto pode significar o cultivo do
próprio veneno destruidor da condição de psicanalista comprometido com a Psicanálise, que
aponta para a libertação do homem, na sua forma genuína, criativa e singular de estar no
mundo.
Devemos ter um compromisso inalienável com a identidade tanto nossa, quanto com a de
quem nos acompanha nessa viagem de descobridores dos sete mares já conhecidos e
navegados, mas nunca dantes navegados sintonizados à bússola do inconsciente.
Para os mais sensíveis, deve ser desconfortável o sentimento de pertencer a uma classe
social que não consegue ter clara a sua identidade. Vive como em Pirandelo, um personagem
em busca de um autor. Quem me autoriza? Os didatas? Os mestres internacionais? Onde
estou? Para onde quero ir? Como rastrear a minha liberdade e ampliar as minhas fronteiras
para além do proposto?
Pobre do psicanalista brasileiro que se considera pleno, realizado. Este se assemelha ao
pavão, encantado com a sua própria plumagem, enfeitiçando em suas palestras e conferências
a plateia ávida de novidades, consumidora de palavras e frases de efeito bem colocadas, que
geram aquela refrescante sensação de bem-estar, das sofisticadas pastas de dente. Como nos
diz Ivan Ribeiro em um de seus poemas: “enquanto isso, lá fora, as plantações abandonadas”.
Levi Strauss nos advertiu que a Psicanálise deve introduzir soluções novas para os indivíduos
e não apenas integrá-los ao grupo de origem. Esta máxima parece não servir aos psicanalistas
brasileiros identificados com o dominador. A elaboração da castração parece ser apenas uma
construção teórica, a ser transmitida a seus discípulos, bem no estilo façam o que eu digo, mas
não façam o que eu faço. Sabemos que muitos destes psicanalistas, estão em vigoroso
processo de mumificação, que lhes é financiado pela reserva de mercado, existente nas
diferentes sociedades de Psicanálise, que de uma forma conservadora defendem a análise
feita com os pares desta mesma ideologia. Esta reprodução em cadeia, inviabiliza a Psicanálise
como um agente de transformações, pois a retira da esfera democrática e saudável do
convívio com as diferenças.
Por outro lado, sabemos que a Psicanálise é um dos recursos disponíveis ao sujeito que tem
sua alma enferma. Fora da terapêutica oficial, , imposta pelas classes dominantes, como a
umbanda, o candomblé, simpatias, ervas medicinais, práticas exotéricas de fácil assimilação,
que dentro de um sistema simbólico determinado apresentam uma certa eficácia em sua
magia ritualística, mas sobretudo cumprem suas funções adaptativas.
Para além das práticas terapêuticas, as manifestações culturais, em sintonia com a
identidade do brasileiro, índio, negro, mulato, mestiço, branco, como o maculelê, bumba-meu-
boi, carnaval, gauchada, etc… são referenciais estruturantes, que vão alimentando a nossa
esperança e garantindo a nossa sobrevivência, enquanto um povo que resiste às tentativas
intervencionistas de dominação. Uma nação mesmo dominada economicamente, não pode ser
dominada culturalmente, pois são as raízes culturais que sustentam e alimentam a árvore da
qual tiramos os frutos para a nossa sobrevivência.

Portanto é da maior importância que estejamos interessados, como brasileiros, em
aprofundar esta questão da Psicanálise de brasileiro. Romper com este círculo vicioso, descolar
a nossa identidade, da identidade das elites perversas, e tentar encontrar as saídas e as
soluções próprias. Apurar a nossa escuta para as diferentes demandas do homem brasileiro,
atrla sua cultura, pelos seus mitos, esteja onde estiver.
Esta tarefa requer a humildade de conviver e trocar com outras áreas do conhecimento
humano tais como: a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, a História, a Literatura.
Freud como parte de sua compreensão e construção teórica, dedicava seu tempo à leitura
de Shakespeare, Jensen, Tomas Mann, Rilke, Dostoievsky, Goethe, e tantos outros. Porque
então não bebermos nas fontes de Guimarães Rosa, Machado de Assis, Callado, Clarice
Lispector, Manoel de Barros, Darcy Ribeiro, etc… etc…, para purificarmos a nossa
sensibilidade, no entendimento de nossas matrizes culturais e suas influências na formação do
nosso imaginário.
Este desafio, entretanto, é parte de um processo que implica em disponibilidade interna
para o aprendizado. Aprendizado que vem do reconhecer a diferença e a alteridade. Este
despojamento trará certamente, grandes dificuldades no manejo das situações, mas poderá
ser de grande serventia para o nosso crescimento como seres humanos, para o conhecimento
sobre os mesmos, nossas idiossincrasias e limitações. Nos disse José Carlos Capinam: “o que
antecede a liberdade é a nossa capacidade de experimentar limites”. Assim como fez o menino
de rua, meu interlocutor-surpresa, libertando-se da tentativa de dominação, de uma falácia
pretensamente paternalista e professoral.


*Psicanalista, Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro.

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