Psicanálise de brasileiro – Maria Helena Rego Junqueira

 * Maria Helena Rego Junqueira

A abertura feita por Fabio Lacombe é bastante ampla e nos reenvia à reflexão do que seria Psicanálise de Brasileiro. Vamos assim incorrer em semelhanças, que podem parecer redundantes, e em diferenças, a partir das ressonâncias que o tema provoca em cada um de nós. Em um primeiro momento a amplitude que o tema coloca pode parecer uma tentadora facilidade, mas em seguida percebemos que em qualquer escolha de abordagem vamos recortar, deixando de fora aspectos que, sem dúvida, são igualmente importantes.

A que nos remete à expressão psicanálise de brasileiro? Cabe assim pensar se há algo eminentemente ‘brasileiro’ na psicanálise, se a prática determina especificidades capazes de colorir a psicanálise com as diversas nacionalidades dos países em que ela é exercida. Vamos focalizar este tema, articulando-o com a situação brasileira. Estamos atravessando um dos momentos mais críticos de nossa história recente. Esta crise torna-se aguda porque implica uma crise de fundamento, da identidade do que é ser brasileiro, da identidade brasileira. A consciência da falência de certos modelos, a partir dos quais o brasileiro médio solucionava seus problemas, impõe novas mudanças. Vale nos referirmos às formas tão decantadas do jeitinho brasileiro e à formação do mito que atravessa o imaginário da sociedade brasileira, o que nos remeteria à história de nossa formação colonial e aos resquícios que nos marcam até hoje. Mas esse caminho poderia ser melhor desenvolvido por alguém com formação em história.

A psicanálise não está fora do âmbito desta crise, nem da necessidade de mudanças. É muito menos nítida do que se supõe a diferença entre individual e coletivo, ou entre o sujeito e sua comunidade, havendo momentos – como nos momentos de crise – em que esta diferença se abole. A psicanálise inscreve o paciente que busca análise em um processo de busca de identidade. Identidade não é aqui entendida como porto seguro, lugar de certezas, mas sim como processo de buscas e travessias instáveis, que não podem ser dissociadas dos processos sociais, políticos e econômicos, nos quais ambos, analista e paciente, estão imersos. Pensamos então, que a proposta psicanálise de brasileiro confronta paciente e analista em uma mesma crise. A psicanálise propõe que se possa pensar, atravessar a crise, a angústia, a não-representação, aquilo que ainda não ganhou expressão. Talvez seja chegado o momento histórico de o brasileiro se pensar, não só no divã dos psicanalistas, mas aprendendo com a psicanálise certas possibilidades de compreenção para além da lógica imposta pelas ideologias, estruturas mascaradoras da realidade social. Creio que a estrutura mítica da sociedade é um fundamento muitas vezes relegado, não pensado, porque se supõe que formas mais desenvolvidas superam o mito e, no entanto, não há dissociação possível entre mito e história. A história é uma forma de se falar o mito e este fala de momentos arcaicos de constituição, antes de formas de organização mais estruturadas.

Não sei se o brasileiro vem perdendo seu direito de cidadania ou se nunca o conquistou plenamente. Somos uma nação bastante jovem e por isso mesmo nos parece que nosso compromisso com o futuro fica maior. Em verdade, toda nossa história oficial conta a história de um povo acostumado à exploração e, por vezes, complacente com ela. A primeira obra de arte considerada brasileira representa uma cena em que franceses estão explorando pau-brasil e os índios, olhando. Isto parece ser emblemático e vale a pena ser pensado. Freud, em Totem e tabu, diz que “o homem não é um ser gregário. É um ser da horda, sempre à espera de um tirano que o guie e proteja”. Ainda no mesmo texto, acrescenta: “o enigma da influência sugestiva se faz ainda mais obscuro quando admitimos que é exercido não só pelo déspota sobre todos os indivíduos da massa, mas também por cada um destes sobre os demais. E haveremos de nos reprovar a unilateralidade com que temos procedido, ao fazermos ressaltar quase que exclusivamente os indivíduos da massa como déspota, relegando, por outro lado, a um segundo plano a importância da sugestão recíproca”. Mais adiante, diz Freud: “todos os indivíduos querem ser iguais, mas sob o domínio de um déspota. Muitos iguais capazes de se identificarem entre si e um superior. Tal é a situação que vemos realizada na massa dotada de vitalidade. Essa questão do salvador investido na figura do tirano é tratada em um livro de Etienne de la Boêtie, intitulado Discurso da servidão voluntária, em que discute a questão do porquê tantos se submetem a tão poucos e também como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas nações às vezes suportem tudo de um tirano só, que tem apenas o poderio que lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los, senão enquanto aceitam suportá-lo e que não poderia fazer-lhes mal algum, se preferissem contradizê-lo. A liberdade não é um bem natural, resultando de uma longa conquista. Sabemos também que, ao longo da vida, estamos sujeitos a diversas formas de relações assimétricas, o que de alguma forma implica em um jogo de poder, dentre elas a relação entre professor e aluno, entre analista e paciente em qualquer forma de relação assimétrica que propicie este jogo de poder. A psicanálise vive essas vicissitudes, tentando desconstruí-las e, atravessando essa assimetria, visa alcançar que o analista seja dispensado deste lugar de suposto saber de que foi investido – ou se investiu, em alguns casos – , permitindo ao paciente passar da submissão de agente da passiva a poder ser sujeito desejante, responsável por seus atos, livre em suas escolhas. E não há dúvida de que isto se processa num interjogo com a realidade social e política, com todas as singularidades históricas que vão constituir os sujeitos e a sociedade.
 

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* Psicanalista. Professora da Escola de Comunicação da UFRJ.

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